As negociações para a elaboração do documento final da 67ª sessão da Comissão sobre o Status da Mulher (CSW), o principal órgão da ONU dedicado à igualdade de gênero, chegaram ao fim no último sábado (18). Como você sabe, CAPRICHO e Girl Up estão mais uma vez juntas para traduzir esse evento que é conhecido como a ‘COP de gênero‘, e que reuniu 45 países membros na sede da ONU em Nova Iorque.
Se do lado de fora a ONU pode parecer um lugar em que as concordâncias chegam de maneira estável e sem grandes conflitos, a realidade desse espaço é bem diferente. O documento final, principal resultado do evento, chamado de conclusões acordadas, se torna um verdadeiro campo de disputa. Nesta edição, o consenso chegou apenas às 4h da manhã do dia 18, após o término oficial da conferência. Porém, o documento final oficial foi publicado pela ONU Mulheres apenas nesta segunda-feira, 20, em um documento de 26 páginas e 89 parágrafos.
O evento da Comissão desse ano foi histórico, já que discutiu pela primeira vez com prioridade o tema dos Direitos Digitais, com foco na inovação e educação digital, reconhecendo pela primeira vez que a Geração Z e as próximas em diante são as mais conectadas digitalmente da história e podem enfrentar desproporcionalmente a discriminação e a violência no meio digital.
Entenda a negociação:
Tudo começa com o rascunho zero proposto pela ONU Mulheres que se baseia em um documento da Secretaria Geral da ONU sobre a temática a ser discutida. Esse documento é enviado aos países membros da CSW cerca de 1 a 2 meses antes do evento. Após ser realizada presencialmente uma primeira leitura e algumas revisões do rascunho, leva-se um “rascunho 2.0” para ser discutido no início da Comissão na sede da ONU em Nova Iorque, que ocorre anualmente em março.
É só então que os países votam e sugerem alterações no texto final ao longo das duas semanas de evento, mas principalmente na semana final, em que se intensificam as negociações e a pressão por consenso. Por fim, chega-se a um consenso e publica-se o documento de conclusões acordadas, com recomendações e compromissos a serem adotados pelos Estados-membros.
O que entrou no acordo?
O documento final tem a forma de parágrafos que informam o que os países reconhecem e endossam. Aqui estão 5 pontos principais desta edição da Comissão, que firmaram um compromisso de promover um espaço digital seguro e acessível para todas as meninas e mulheres:
- A necessidade de garantir que direitos humanos sejam impulsionados e respeitados em sua totalidade no processo de concepção, design, desenvolvimento, avaliação e regulação de tecnologias;
- O potencial da tecnologia de promover direitos das meninas e mulheres, com papel essencial que plataformas digitais têm para mobilização e participação na vida pública, mas também a atenção que deve-se ter ao poder que a tecnologia tem de perpetuar estereótipos de gênero;
- Grande foco na criação e consolidação de políticas públicas para a eliminação e prevenção de todas as formas de violência que podem ser ampliadas pelo uso de tecnologias, com abordagens centradas em sobreviventes e vítimas de violências;
- A importância dos direitos trabalhistas para enfrentar os desafios da mudança tecnológica, já que mulheres estão mais propensas a perderem seus empregos devido à automatização e digitalização. (E saiba que isso ainda não havia sido abordado adequadamente em edições anteriores, viu?)
- A importância do papel de tecnologias digitais para a saúde, como a telemedicina, para a garantia de amplo acesso à informação e serviços, assim como a necessidade de proteção de informações pessoais.
Falta de consenso que custou a madrugada
Esse ano, as negociações sobre o acordo final foram mais difíceis principalmente por conta do embate acerca de direitos sexuais e reprodutivos. Nesta edição, houveram articulações de grupos de países para deixar de fora expressões que remetem a direitos sexuais e reprodutivos, assim como educação sexual abrangente. São alguns deles: Camarões, Egito, Etiópia, Guatemala, Indonésia, Irã, Iraque, Nicarágua, Omã, Nigéria, Senegal e Sudão.
É importante notar que estes são países com regimes notoriamente autoritários e resistentes às pautas de direitos das mulheres, como os escândalos recentes de violações de direitos humanos. Além disso, alguns desses países utilizaram sua posição de Estados-membros da Comissão a fim de realizar eventos paralelos e oficiais dentro da ONU para promover agendas por eles chamadas de “pró-família”. Foi utilizado o argumento de que programas de planejamento familiar iriam enfraquecer as famílias e desencorajar a maternidade (o que é um absurdo, né?). Também houveram ataques à Corte Interamericana de Direitos Humanos por decisões favoráveis ao aborto em casos de estupro, anencefalia fetal e risco de morte materna.
É importante destacar que nesses locais ainda presenciei uma linguagem agressiva contra pessoas trans e direitos LGBTQIA+. Prontamente, a Convenção de Direitos das Mulheres (WRC), coalizão que reúne mais de 200 organizações feministas da sociedade civil, reafirmou o compromisso de não apenas se aliar mas liderar esforços juntamente com a Convenção LGBTI para abordagens interseccionais e multilaterais para pensar os direitos das meninas e mulheres.
Quem e o que ficou de fora?
Apesar dos avanços, houveram retrocessos na garantia de direitos das pessoas LGBTQIA+, falhas em reconhecer o papel da tecnologia em expandir o acesso à educação em direitos sexuais e reprodutivos e não houve menção às relações entre transformação digital e mudanças climáticas.
E o Brasil nisso tudo?
Apesar do Brasil ser um país membro da Comissão, não tivemos nenhum evento verde e amarelo no espaço oficial da CSW este ano. Mesmo assim, em conversas com a delegação oficial do Brasil na Comissão, ficou claro que a pauta dos direitos digitais ganhou mais força e que existe a intenção do Governo Federal brasileiro de construir políticas e programas voltados à garantia de acesso à tecnologia e educação digital. O Brasil assinou o acordo desta edição da CSW e ano que vem irá iniciar um novo mandato de Estado membro da Comissão. Vamos aguardar os próximos capítulos para entender como a CSW deste ano irá reverberar nos direitos das meninas e mulheres brasileiras.