quela vontade de dormir com o barulhinho da chuva batendo na janela pode ser prazeiroso – e até o desejo – de alguns. Mas definitivamente não é assim para todo mundo. Existe uma grande parcela da população aqui no Brasil que quando começa a ouvir os pingos baterem no vidro e vê e ouve os raios e os trovões no céu, sente medo e corre para salvar a própria família.
“Eu sempre questiono, mas ‘quem é que pode gostar do barulho de chuva?‘ Temos uma população recorde de vulnerabilidade na rua, essas pessoas não têm acesso a água, não tem acesso ao banheiro e não consegue se higienizar”, questiona Ana Sanches à CAPRICHO. Ela pesquisa questões de desigualdades socioambientais e raça sobre a ótica do racismo ambiental e é consultora de projetos no Instituto Pólis.
E este assunto é muito, muito sério. Você, leitora de CAPRICHO, acompanhou as imagens do litoral paulista sendo tomado por chuvas, deslizamentos de terra e lama tomaram o país nas últimas semanas. Ao todo, mais de 60 pessoas morreram e dezenas ainda estão desalojadas e desaparecidas.
Ainda hoje, a região de São Sebastião, no Litoral Norte de São Paulo, enfrenta falta de mantimentos básicos, como absorventes, alimentos e água. E, por isso, quando a chuva ameaça chegar, existe uma parcela da população que não é afetada por ela, mas existe outra que é atingida de maneira desproporcional e com danos irreparáveis.
E essa diferença tem nome e sobrenome: racismo ambiental. Pois é, este é o nome do reflexo direto da emergência climática que estamos atravessando e afeta diretamente pessoas pretas, não-brancas e pobres, que moram em regiões de risco ou de encostas de morros.
“O racismo ambiental traz esse olhar de quem são as pessoas mais prejudicadas com a degradação ambiental e quem são as pessoas que deveriam estar nos debates e nos espaços de poder. Direitos humanos e meio ambiente estão interligados. Toda a violação de direitos humanos também é uma violação à vida”, pontua Sanchez.
E o problema é muito, muito grande
Nos últimos anos, tem sido cada vez mais recorrente eventos climáticos extremos. Você deve se lembrar (até porque a galera que é super fã do BTS entrou na corrente de ajuda): no ano passado, as chuvas em Petrópolis, no Rio de Janeiro, deixaram ao menos 171 mortos.
Antes disso, em 2019, o rompimento da barragem de Brumadinho, em Minas Gerais, tirou a vida de 270 pessoas. Infelizmente, esses acontecimentos tendem a acontecer com mais frequência e daí a importância de refletir sobre como os governos municipais, estaduais e federais podem e devem se preparar diante dessa emergência.
Para Ana Sanches, há a necessidade de entender a relação do meio ambiente com as vidas das pessoas que estão nesses locais. E essa avaliação também está próxima da percepção do estudo produzido pelo Observatório do Legislativo Brasileiro, que analisou a atuação de congressistas de acordo com sexo e raça/cor.
O resultado é: Enquanto pessoas brancas legislam mais sobre Agricultura e pecuária, temas relacionados ao meio ambiente e direitos humanos e minorias foram os temas mais mobilizados pelos parlamentares pardos e pretos.
Mas, calma, a gente te explica tudo certinho. A Ana Sanchez conversou com a CAPRICHO e explicou o que é e o surgimento do racismo ambiental e como é possível aplicá-lo às discussões do dia a dia, viu?
Pode parecer complexo mas, além disso, ela frisa a necessidade de municípios, estados e federação também levarem em conta a temática para a proposição de políticas públicas – ainda mais quando se leva em conta as mudanças climáticas.
Leia o papo que tivemos com a especialista abaixo:
CAPRICHO: O que é racismo ambiental?
Ana Sanches: Temos o racismo ambiental como conceito, quando ele é compreendido como uma prática, e tem o racismo ambiental na sua existência, que é milenar. Eu costumo ilustrar para as pessoas entenderem, na prática, o que é racismo ambiental. O conceito foi escrito academicamente nos Estados Unidos, a partir das lutas pelos direitos civis. Naquela movimentação tinha um recorte que era de contaminação de regiões, contaminação de solo, de ar, de água. E nesse movimento tinha um químico, que é o Benjamin Chaves, que identificou as áreas que sofreram contaminação de solo por despejos químicos de empresas e por autorização por parte do poder público, que era justamente as áreas onde moravam as pessoas negras e pobres e imigrantes. E foi ali que ele reconheceu que isso é uma prática de racismo ambiental. A partir dessa movimentação do Chavis vem um outro acadêmico que é o Robert Bullard. Ele traz uma outra perspectiva e constitui uma luta por justiça ambiental contra o racismo ambiental. A partir de meados da década de 1970 é que o conceito ganha força.
Em meus estudos costumo dizer que o racismo ambiental no Brasil existe desde que os colonizadores estiveram aqui. Então o primeiro caso de racismo ambiental é justamente quando os portugueses invadiram o nosso território. O racismo ambiental mostra que a degradação ambiental está correlacionada a uma exploração de corpos e até genocídio.
Por exemplo, a questão dos yanomamis é um caso muito emblemático nesse sentido. Ali temos a questão da exploração do ouro, né? Onde o minério contamina o solo que contamina a água e que mata os indígenas. Não só mata como adoece.
A gente já vivencia o racismo ambiental há mais de quinhentos anos no Brasil.
Ana Sanches, pesquisadora e consultora do Instituto Pólis
CAPRICHO: Quais são os próximos passos para os municípios lidarem com a tragédia no litoral?
O que aconteceu em Caraguatatuba e São Sebastião é algo que pode acontecer em muitos municípios. Primeiramente, precisamos de um mapeamento e entender como está a situação de moradia do litoral norte. Infelizmente o que tem acontecido é a revisão do Plano Diretor em autorizar com que mais áreas possam ser construídas nessas regiões para que tenha mais turismo. Nesse sentido, municípios, governos estaduais e federais precisam trabalhar em conjunto para conseguir uma moradia digna para as pessoas que foram desalojadas.
O próximo passo é refletir sobre uma nova política pública. É necessário que o desmatamento seja zero. Precisamos repensar as formas de produção de energia e melhoria no esgotamento sanitário, de não poluição de ar, de assoreamento dos rios. Ou seja, é também uma questão de planejamento urbano para que a água escoe. Para tudo isso, será necessário investimento público.
Em outras palavras, é necessário um Plano de Adaptação Climática.
CAPRICHO: Qual a importância de nomear os fenômenos como racismo ambiental em vez de só chamá-los de tragédias ambientais?
Isso é muito importante. Primeiro, pra colocarmos no debate quem de fato está sendo impactado por isso. E sobre as desproporcionalidades. É isso que o racismo ambiental aponta: a desproporcionalidade dos efeitos que recaem sobre uma população racializada. No caso do litoral, precisamos pensar: quando choveu: quem perdeu suas casas? Quem não teve pra onde ir? Quem foram as pessoas que morreram? Que perderam seus familiares? Ou seja, chamar de racismo ambiental é uma forma de demarcação política.
Nós viemos aqui pra disputar algo que pra gente é ancestral. Uma vez o Diosmar Filho falou isso pra mim: sempre teve um plano político de desenvolvimento para esse país. A única questão é que nós nunca fomos ouvidos. Nós ainda não estamos representados nos espaços de poder: nas academias, como professores, juízes ou médicos.
Essa é a importância de não chamar só de desigualdade ambiental. Isso no caso do litoral é super importante que Estados e Municípios levem em conta o racismo ambiental na hora de pensar nessas políticas públicas para as pessoas.
E as mudanças climáticas já estão impactando a vida das pessoas, né?
Exatamente. Temos um recorte da população que quando começa a ouvir os trovões ela sente medo, medo de morrer. Não é um grupo que fala ‘ai que delícia vou dormir com barulho de chuva’.
E eu sempre questiono, mas ‘quem é que pode gostar do barulho de chuva?’ Temos uma população recorde de vulnerabilidade na rua, essas pessoas não têm acesso a água, não tem acesso ao banheiro e não consegue se higienizar.
A covid-19 evidenciou ainda mais as desigualdades e o próprio racismo. Pessoas negras e pobres morreram porque elas não conseguiram distanciamento.
Assim, temos que fazer um esforço enquanto sociedade para também começar a reconhecer que as pessoas negras, indígenas e LGBTS são as pessoas que deveriam estar nos espaços de poder que são dominadas pelos homens brancos. A campanha vote cidades justas do Instituto Pólis atuou nesse sentido, incentivando as pessoas a votarem em mulheres negras, indígenas e trans.