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Movimento ‘red pill’, ‘homens sigma’ e a misoginia camuflada de coaching

Eles dizem ingerir a "pílula vermelha de realidade", mas continuam achando que vivem em um sistema pensado para privilegiar mulheres. Eu conto ou vocês?

Por Isabella Otto Atualizado em 1 mar 2023, 16h39 - Publicado em 1 mar 2023, 16h35

O Manual Red Pill Brasil, escrito por Thiago Schutz, que ficou conhecido nas redes sociais como o “Coach do Campari”, é inspirado em um documentário de 2016, chamado The Red Pill, de Cassie Jaye, que retrata todo um movimento que defende a errônea ideia de que o feminismo é o contrário do machismo, ou seja, prega a superioridade das mulheres.

O movimento, que acredita que o sistema favorece as mulheres, bebe da fonte Matrix, sucesso do gênero sci-fi de 1999. No filme, o personagem Neo (Keanu Reeves) precisa escolher entre uma pílula azul e outra vermelha. No longa, a pílula azul significa continuar vivendo na ilusão e na ignorância enquanto a vermelha liberta a pessoa do mundo imaginário, dando-lhe uma dose de consciência.

Na visão dos “redpillados”, as mulheres são infiéis, sem caráter e interesseiras e, consequentemente, devem ser tratadas como tal. Logo, não são feitas para namorar ou casar, sendo vistas como manipuladoras, opressoras e objetos sexuais de prazer.

A maioria dos discípulos das “pílulas de realidade” é da extrema-direita e acha que o mundo não discute como deveria problemas relacionados aos homens, como o alistamento militar obrigatório, a falta de serviços para homens vítimas de violência doméstica, a disparidade de sentenças criminais e até a misandria que, segundo eles, é praticada pelo feminismo.

Que sistema é esse que privilegia as mulheres?

No Brasil, uma mulher é estuprada a cada dez minutos e uma é morta a cada sete horas. Os dados, do 14° Anuário Brasileiro de Segurança Pública, mostram apenas uma fatia dessa pizza difícil de engolir, uma vez que há uma subnotificação dos casos – especialmente em lugares mais afastados, como no interior e em periferias, onde o machismo se faz mais presente.

Significa que homens não são estuprados no país? Não. Mas significa que 85% das vítimas do crime de estupro no Brasil são mulheres e 70% dos casos envolvem crianças ou vulneráveis, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

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Além disso, a taxa de desemprego entre as mulheres é 54% maior que a dos homens, como mostra IBGE. Trabalhos informais e a sobrecarga doméstica são as principais causas. O abandono escolar, que acaba refletindo também no índice de desemprego feminino, é maior entre as meninas brasileiras. “O peso da responsabilidade recai de diferentes formas entre meninas e meninos”, explicou Cleo Manhas, integrante da Rede de Ativistas pela Educação do Malala Fund no Brasil, à CNN.

Diante de tudo isso, dizer que o sistema é pensado para favorecer as mulheres é ignorar séculos de civilizações e sociedades construídas em cima do patriarcalismo, onde a figura feminina é vista como dona de casa, menos capaz que a masculina – especialmente em ambientes de trabalho – e, consequentemente, digna de menos direitos. No Brasil, por exemplo, o voto feminino só foi concedido em 1932 enquanto os homens podiam votar desde o Brasil Imperial, ou seja, de 1800.

A objetificação feminina reforçada

Thiago Schutz, de 35 anos, participou de um reality show da Netflix intitulado O crush Perfeito. No programa, ele se apaixona por Joelma Handziuk, de 53 anos, que acaba escolhendo outro homem para se relacionar no final do experimento. A série é de 2020.

Desde então, Schutz aderiu ao movimento “red pill” e se autointitula coach de masculinidade – reforçando em seus discursos machismos e questões envolvendo masculinidade tóxica. Thiago já chegou a dizer, por exemplo, que não vale a pena se relacionar com mulheres acima de 30 anos. Curioso pensar que, pouco tempo antes, ele se interessou por uma cinquentona (no melhor sentido da palavra), que o rejeitou. “Tenho pena, mas não sou responsável por esse trauma e comportamento”, disse Joelma durante live com a cantora Bruna Volpi.

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Coletivos como o “red pill”, além de serem ageístas e nocivos para movimentos sociais importantíssimos, como o feminismo – ao pregar uma superioridade feminina que não existe -, compactuam com violências diárias sofridas pelas mulheres, como a objetificação do corpo feminino – que é ainda reforçada por outra tendência: a dos “homens sigma”.

Quem são os “homens sigma”?

É um grupo de homens, também majoritariamente formados por apoiadores da extrema-direita, que está viralizando em redes como o TikTok e se apresenta como o contário do macho alfa.

Para se tornar um “homem sigma” é preciso seguir algumas regras, como praticar o amor próprio e respeitar os pais. Até aí, tudo certo. Agora, os “sigmas” se entendem como lobos solitários e itens raros no mercado, adorados e cultuados pelas mulheres. Verdadeiros deuses da “macholândia”!

Justamente por isso, segregam as mulheres em grupo de valores e só investem naquelas que eles consideram “ser para casar”. Do contrário, é melhor seguir sozinho.

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E não é brincadeira quando falamos que eles se tratam como deuses, viu? Os emojis dos “homens sigmas” são um copo de vinho e uma estátua moai da Ilha de Páscoa. A combinação 🍷🗿 retrata o poder, a inteligência e a masculinidade dos “finos señores”, que se inspiram em personagens como Patrick Bateman (Christian Bale), do filme Psicopata Americano.

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Uma publicação compartilhada por Filosofia Sigma 🍷 (@filosofia.sigma)

“Quando eu vejo uma garota bonita na rua, eu penso duas coisas. Uma parte de mim quer sair com ela, conversar, ser muito gentil e tratá-la com carinho. A outra parte pensa como seria a cabeça dela decepada“, diz vídeo publicado pelo perfil Filosofia Sigma no Instagram. Originalmente, a frase foi dita pelo serial killer Edmund Kemper e foi adotada pela “Filosofia Sigma”. O americano tinha como principal alvo jovens universitárias e ficou conhecido como “o gigante assasino”.

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Problemático em diversos níveis, não? E mais uma “tendência social” que exala misoginia e reforça um sistema que, definitivamente, não foi nem é pensado para privilegiar mulheres. Fora o fator da rejeição, principal motivador desses movimentos de ódio contra as mulheres, camuflados, em suma, de coaching de relacionamento e autoestima.

Sabe aquela cena de Titanic em que os homens se levantam para ir ao convés beber, fumar charuto e vomitar groselhas sobre o mundo, a sociedade e o valor dos homens descentes de poder? Cal Hockley (Billy Zane), definitivamente, seria o líder dos “homens sigma” em alto mar. Mas, para aderir ao movimento “red pill”, precisaria ainda deixar crescer o bigode.

Gif do Cal de Titanic
Gfycat/Reprodução
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