ocê abre o TikTok e a primeira coisa que vê é um vídeo do ator Tom Hanks falando sobre os benefícios de um novo seguro dentário. O ator é super conhecido, e você confia na propaganda e acaba pagando pelo serviço. Porém, logo descobre que foi vítima de um golpe.
A inteligência artificial veio para ficar – ninguém duvida disso por aqui – mas toda a discussão gerada por conta dessa tecnologia tem um nome: dilema ético. A recente greve dos roteiristas de Hollywood, que se tornou uma greve ainda maior quando os atores também paralisaram as atividades, têm relação com isso.
Afinal, é fácil usar uma IA como o chatGPT para escrever um roteiro de filme ou uma tecnologia de geração de imagem para reproduzir a aparência e voz de um ator nas telonas, certo?
Pois é. O que pouca gente (aparentemente) parou para pensar até o momento são as implicações do uso dessa tecnologia na humanidade. Porque, vamos combinar, não é todo mundo que vai usar essas IAs com consciência – tem muita gente querendo passar a perna nos outros por aí e se aproveitar da imagem das pessoas, famosas ou não.
Quer mais um exemplo? Há alguns dias, o Daily Mail, um dos maiores jornais britânicos, publicou uma matéria com dados exclusivos revelando que o número de conteúdos pornográficos criados com inteligência artificial e se utilizando de imagens de mulheres famosas (como Taylor Swift) dobrou no último ano.
Essa prática ganhou um nome também “deep fake”, e você nem precisa ir muito longe para encontrar exemplos como o citado no parágrafo acima. Com a popularização dessas tecnologias, tem se tornado cada vez mais fácil criar conteúdos mentirosos usando a imagem de pessoas famosas sem autorização. E é aí que mora o perigo.
Por que “dilema ético”?
Pense no seguinte cenário: surge na internet uma nova ferramenta de uso gratuito. Essa ferramenta permite que você crie textos, imagens e até vídeos com apenas alguns comandos. Ela não dá créditos, gera informações baseadas no banco de dados gigantesco que é a internet, sem usar qualquer tipo de filtro ou critério de veracidade das informações, e permite que esses conteúdos sejam distribuídos em outras plataformas já existentes, de uso em massa e que também são gratuitas (até agora).
Acontece que esses conteúdos são feitos com base no trabalho e no conteúdo criado por outros seres humanos, que não são creditados ou consultados para a criação desse novo monstro criativo. Isso significa que há um embate de valores, de regulamentação e até de controle no uso dessas ferramentas. Ou seja, dilemas éticos que vão desde a privacidade dos dados até o impacto no mercado de trabalho.
Vamos de mais exemplos? Há alguns meses a editora brasileira Novo Século lançou uma nova edição do clássico livro Alice no País das Maravilhas com uma capa desenvolvida por inteligência artificial. Na hora, recebeu uma enxurrada de críticas, por motivos que deveriam ser óbvios: essas ferramentas se utilizam de artes já existentes na internet para criar a versão final e é uma forma de baratear os custos de produção, sem pagar artistas ou direitos de uso de imagem.
A editora vendeu a edição como “de luxo” com “conteúdo exclusivo” e justificou o uso de IA nas artes de capa como “disruptiva”, tal qual a obra de Lewis Carroll, e uma forma de “abraçar” as novas tecnologias.
Historicamente, artistas são desvalorizados e seu trabalho é barateado com a desculpa de ser “caro demais”. Principalmente no Brasil, a desvalorização da arte é tão grande que toda uma categoria de profissionais, que vão de designers a jornalistas, ganham salários incompatíveis com a qualidade (e até a quantidade) do trabalho até hoje. Dilema ético.
A tecnologia deve ser usada a favor da humanidade e não contra ela – e é por isso que a regulamentação do uso dessas ferramentas é tão importante.
Outro exemplo são as recentes ondas de demissão que aconteceram em algumas das maiores empresas de tecnologia do mundo. Em um dia, a Microsoft, uma das maiores do ramo, demitiu 10 mil funcionários. No dia seguinte, literalmente, investiu 10 bilhões de dólares na OpenAI, a empresa que desenvolveu o chatGPT. Quer saber o mais curioso dessa história? Parte dos profissionais demitidos faziam parte da comissão de ética do desenvolvimento de inteligência artificial.
Um último – e super importante – exemplo, é de um vídeo que viralizou há algumas semanas. Nele, os pais de uma menina, ainda criança, foram confrontados com a imagem da filha já adulta em um vídeo gerado por IA e transmitido durante os trailers de uma sessão de cinema. A versão adulta da menina falava sobre os perigos da superexposição de crianças na internet na era da inteligência artificial.
Afinal, é fácil pegar imagens de diferentes ângulos de um bebê, gerar uma versão envelhecida dessa criança e usar os seus dados para, entre outras coisas, abrir contas bancárias, pedir cartões de créditos e aplicar outros tipos de golpes, destruindo a linha de crédito desse indivíduo antes mesmo dele atingir a maioridade.
Isso é muito Black Mirror????
Pois é, a gente bem sabe que essas possibilidades são bem assustadoras. A tecnologia deve ser usada a favor da humanidade e não contra ela – e é por isso que a regulamentação do uso dessas ferramentas é tão importante.
Como disse a editora Novo Século, as IAs vieram para ficar e vão passar a fazer parte do nosso dia a dia, isso é um fato. Porém, é fato também que quando o assunto é o capitalismo, diminuir os custos em prol do lucro é uma das primeiras regras do sucesso nos negócios e, sem uma regulamentação, muita gente vai perder o emprego, literalmente, do dia para a noite.
Tem mais: a gente precisa pensar na questão do acesso a essas tecnologias e a curva de aprendizado do ser humano. Não é todo mundo que sabe o que é uma inteligência artificial, como usá-la e de que forma ela pode ser útil para diferenciar esse profissional no mercado de trabalho – ou seja, aí temos margem também para um aumento da desigualdade social.
Vamos considerar que os adultos de hoje, que já estão no mercado de trabalho, vão precisar correr para se adaptar, já que não existe um plano de implementação governamental, por exemplo, que ofereça suporte e orientação para esses profissionais aprenderem a usar essas tecnologias no trabalho – é cada um por si nessa história. Pense nos profissionais mais velhos, a galera acima dos 50, 60 anos. Pare eles, pode ser ainda mais complicado se adaptar a essas nossas ferramentas, não por falta de capacidade, mas por falta de apoio e incentivo.
Percebe como essa discussão é muito mais profunda? Resolver esses dilemas éticos são essenciais para garantir a continuidade da espécie de forma sustentável (por mais apocalíptico que isso soe), e, vamos combinar, considerando a questão climática, não é todo mundo que tem pensado assim, né?