Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade deixaram contribuições valiosas para as produções artística e literária brasileiras com obras que até hoje permanecem no imaginário social. No auge de suas carreiras na década de 1920, eles formavam um casal e construíam suas personas também por meio de suas aparências, contribuindo para o fortalecimento da estética do movimento modernista, que acontecia nesse período.
Como a moda é um rico elemento de estudo para entender a sociedade em determinado contexto histórico, no livro O guarda-roupa modernista: o casal Tarsila e Oswald e a moda, publicado pela Companhia das Letras, Carolina Casarin, doutora em Artes Visuais e professora de história do vestuário, se utiliza disso e de uma coletânia de documentos e imagens para entender o armário de Tarsila e Oswald durante os anos que ficaram juntos, de 1923 a 1929. “A performance da aparência corporal acompanha a performance artística, e algumas escolhas de Tarsiwald – apelido que Mário de Andrade deu ao casal – no campo da moda podem ser pensadas de maneira análoga às proposições estéticas da primeira geração do movimento“, escreve a autora no texto de apresentação do livro.
A CAPRICHO conversou com Carolina Casarin para entender melhor o que a motivou pesquisar sobre esse assunto e suas conclusões a partir disso.
A professora conta que, ao preparar uma aula a respeito da indumentária brasileira, encontrou uma foto de Tarsila do Amaral usando um vestido xadrez para a sua primeira exposição individual, que aconteceu em Paris, que chamou sua atenção para fazer uma pesquisa aprofundada. A peça é da maison Paul Poiret, marca francesa de alta-costura queridinha da artista. “Pensando nas criações de Poiret na década de 1920, o guarda-roupa de Tarsila é certamente luxuoso, bem caro e exuberante. Houve bastante investimento na construção de sua aparência”, afirma Carolina.
Esse look também nos ajuda a entender como o casal tinha consciência do poder de suas aparências e do lugar de destaque que a aparência ganhava dentro da cena da Arte Moderna. “Fico com a impressão de que eles têm sucesso em inserir aquela roupa [o vestido xadrez] dentro de toda a estética da exposição, que é a estética Pau-Brasil“, continua a autora. “Essa roupa pode ser um tanto antiquada se pensarmos em sua silhueta, com saia volumosa, comprida… O próprio xadrez remete à cultura caipira brasileira. Ou seja, a roupa não é necessariamente modernista, mas a maneira usada a torna modernista.”
Já na primeira exposição de Tarsila no Brasil, que veio acontecer em 1929, sete anos após a Semana de Arte Moderna de 1922, ela também escolheu um vestido assinado por Paul Poiret, porém, desta vez, em preto e branco e com uma silhueta cilíndrica. “É uma roupa completamente diferente, o que, no meu ponto de vista, demonstra a consciência que ela tinha da imagem que queria construir naquele momento. Se em Paris interessava a imagem da caipirinha, porque era com esse tipo de elemento que ela estava lidando na sua arte, no Rio de Janeiro, que era a capital da República naquele momento, interessava a imagem da mulher moderna, da mulher alinhada a uma ideia de modernidade na moda, a uma ideia de neutralidade. Era uma roupa muito mais simples, tão luxuosa quanto, mas mais econômica, monocromática, neutralizada, com saia bem mais curta, que denota agilidade”, explica Carolina. “Essa diferença, para mim, é muito significativa, porque, de alguma forma, corrobora com essa hipótese de que eles têm a consciência do poder das suas aparências.”
O guarda-roupa de Oswald de Andrade, segundo a professora, às vezes era até mais modernista do que o de Tarsila, com trajes coloridos, sobreposição de padrões até então incomuns, ausência de colarinhos engomados… Além disso, o artista não apresentava uma linearidade na moda e costumava transitar entre diferentes estilos, do artista de vanguarda à elegância mais esportiva até a estética formal do homem de negócios.
“No quadro da Arte Moderna de maneira geral, havia cada vez mais o interesse pela figura do artista. Então, eles [o casal] sabiam que por meio da aparência, principalmente da Tarsila com roupas de alta-costura, como uma maneira de legitimar as práticas artísticas que faziam naquele momento“, analisa a autora.
Cem anos depois da Semana de Arte Moderna, o legado do casal, especialmente de Tarsila, e do modernismo continua sendo lembrado – e até apropriado pela moda. Para Carolina Casarin, isso demonstra como o estudo da roupa amplia nosso olhar sobre o estudo de uma sociedade em determinado espaço e tempo. “A moda é um objeto imaterial e é uma ideia que precisa de objetos muito materiais, como a roupa, para existir, para fazer esse objeto imaterial, ou seja, a moda, acontecer. Então, a roupa é um objeto absolutamente ligado à nossa dinâmica social e econômica, histórica, filosófica, antológica. A roupa diz respeito à maneira como nós nos entendemos no mundo.”
“É muito importante olhar para a roupa de uma maneira crítica e analítica. Porque, a partir do objeto vestuário, a gente aprofunda a nossa lucidez, ampliamos o foco sobre a nossa própria sociedade, sobre a história e nos ajuda a entender as dinâmicas do presente“, acrescenta. “A moda é a filha do capitalismo, ou a mãe. Está tão ligada ao nosso sistema econômico que é impossível pensar uma moda sem capitalismo, ou um capitalismo sem moda. Cada item que a gente olha e que está na superfície da aparência, que a gente olha e pensa que é fútil, que não está dizendo nada, está intimamente vinculado e enraizado em fatos históricos, econômicos e sociais profundos. Quando olhamos para a moda sob essa perspectiva, a gente ganha muito na nossa visão e na tomada de consciência sobre o nosso lugar no mundo“, finaliza.
Se você gosta de estudar moda, história e arte, vale a pena a leitura de O Guarda-Roupa Modernista: O casal Tarsila e Oswald e a moda, que está à venda por R$ 87,92*.
*Preço consultado em 23 de março de 2022. Sujeito a alterações. As vendas realizadas através dos links neste conteúdo podem render algum tipo de remuneração para a Editora Abril.