Desde 2008, o Brasil lidera o ranking de países que mais matam pessoas trans e travestis, segundo dados internacionais da ONG Transgender Europe (TGEU). No ano de 2019, 124 transexuais foram assassinados no nosso país, média de um homicídio a cada três dias, conforme pesquisa realizada pela Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) em parceria com o IBTE (Instituto Brasileiro Trans de Educação). Os números são graves e evidenciam a urgência de políticas públicas inclusivas para o público trans.
Pensando em transformar esse triste cenário e com o objetivo de mudar a vida de mulheres trans e travestis em situação de vulnerabilidade social, nasceu o Coletivo Trans Sol. Em 2015, ele era um curso extracurricular e independente da Unisol (Central de Cooperativa e Empreendimentos Solidários) – esta última tinha convênio com o Transcidadania, programa da prefeitura de São Paulo que pretende promover a reintegração e o resgate da cidadania para pessoas trans. Priscila Nunes e Mavica Morales, que eram bonequeiras, e Otávio Matias, que tinha conhecimento em moda e costura, se uniram para dar aulas no projeto. O objetivo era ensinar um ofício às alunas trans e travestis. Em entrevista à CAPRICHO, Priscila contou como tudo aconteceu.
“No primeiro momento, só queríamos dar aulas, e foi o que aconteceu por um ano e meio. Depois, chegou um período em que percebemos que só as aulas não eram o suficiente. Porque, quando as mulheres terminavam o curso, o que iriam fazer? Elas têm máquina em casa? Para quem iriam vender os produtos? Como abordariam pessoas para se tornarem costureiras conhecidas? A gente começou a entender que tínhamos que trabalhar junto com elas. O trabalho pós-aula, que seria ensinar a vender, tinha que continuar. E também fazer o serviço contrário, que é trazer a sociedade para esse grupo de pessoas vulneráveis para entender que elas têm criatividade”, afirma.
Com isso, surgiu a oportunidade de fazer um desfile com a Casa 1, Centro de Cultura e Acolhimento LGBT+, em que o Coletivo produziu quimonos que foram leiloados. “Foi quando as alunas perceberam que o produto que elas faziam poderia ser assimilado pelo público”, lembra.
Mais tarde, começaram a participar de feiras, como o Jardim Secreto, para vender os produtos, e deu muito certo! “Foi ali que começamos o trabalho da venda, de como elas iriam se apresentar e oferecer as peças”, explica Priscila. Além disso, nessa época o projeto Trans Sol se tornou um Coletivo. “Perguntamos às alunas se elas gostariam de formar um coletivo em que todo mundo trabalhasse e recebesse por aquilo que fazia. Algumas aceitaram, outras não, e hoje nós somos um coletivo que dá aulas e temos a marca do Coletivo Trans Sol também, que faz quimonos e shorts.”
Nesse período, Priscila e os outros colaboradores conheceram a GÜLE GÜLE, uma marca que estava disposta a ajudá-los e, desde então, é quem fornece os tecidos usados na produção. Outras parcerias importantes são com o Instituto C&A, com o qual fazem feiras e dão palestras e workshops, e com o SESC, onde realizam uma oficina de discussão de gênero por meio da bonecaria. Demais, né?
Quando o contrato com o Transcidadania terminou, eles tiveram que sair do espaço da prefeitura em que ficavam. Assim, mudaram para um local emprestado pela Casa 1, que foi reformado pelo Instituto C&A, e, em setembro de 2019, conseguiram o próprio ateliê devido à uma doação financeira que permitiu o pagamento de dois meses do aluguel. O projeto deu entrada nos papéis para formalizar o título de Associação, as costureiras eram remuneradas e tudo estava indo bem, até que chegou a pandemia do coronavírus. O Instituto C&A ajudou por dois meses, manteve alunas e ex-alunas, mas precisavam de mais uma força e a equipe decidiu fazer um financiamento coletivo, que foi um sucesso!
Por enquanto, os planos futuros estão incertos devido a pandemia e eles estão apostando nas vendas on-line. Existem inúmeras dificuldades, mas desistir não é uma opção. “Vamos pensar em fazer um financiamento recorrente e estamos vivendo um dia de cada vez. Estamos batalhando e não vamos desistir“, diz Otávio Matias.
Priscila ainda relata que o poder de transformação do Coletivo é incrível. “Eu acho que ele transforma social, econômica e afetivamente. Você poder confiar em outra pessoa, se sentir aceita em um espaço, não ter medo de estar nesse espaço. E eu acho que elas se empoderam muito mais quando alguém tem uma má impressão e elas respondem que são costureiras. É diferente o olhar que as pessoas lançam depois que sabem. ‘Ah, você está no coletivo, é você que faz essa roupa’. É muito importante você falar ‘sou eu que faço essa roupa’. Para elas é maravilhoso. Eu sinto isso.”
Ela também comenta sobre uma ocasião muito importante para o projeto, quando as costureiras foram costurar ecobags ao vivo na Casa de Criadores, evento que lança novos estilistas brasileiros. “Elas ficaram deslumbradas, porque você vê a moda acontecendo. Elas tiveram acesso aos camarins e viram maquiagem, modelos e tudo”, revelou.
Roberta Rodrigues, que entrou em uma das primeiras turmas e hoje é presidente do Coletivo, era tímida no começo. Priscila conta que eles recebiam livros de moda e, com muito custo, incentivaram Roberta a ler. “Ela pegou gosto pela leitura e, um tempo depois, ganhou uma bolsa de estudos para entrar em uma faculdade de moda. Só que ela tinha parado de estudar, e aí voltou a estudar para poder fazer a faculdade. Então, eu acho que a transformação que acontece é de você acreditar em si mesma.”
Ao final da entrevista, também falamos com Paula Muniz, travesti que conheceu o projeto pelo Transcidadania, saiu, voltou recentemente e está relembrando o que já sabia e aprendendo coisas novas. À CH, ela contou que adora moda: “Gosto de me vestir bem, customizar as minhas roupas. Eu me visto como eu me sinto. Se eu estou feliz, estou toda colorida. Se não, eu tiro um pouco das cores e coloco preto. Se estou animada, ponho um cinto, um brincão, prendo o cabelo. Se não, saio mais discreta. Cada dia estou de um jeito.”
Paula explicou a importância do coletivo em sua vida e de tantas outras mulheres trans e travestis que já foram empoderadas por ele. “É muito importante para fugir da rotina, porque a maioria das trans trabalham com programas, são prostitutas, e esse é o universo que elas conhecem. Elas se prostituem para pagar as contas, porque temos que pagar as contas, como todo mundo. E, geralmente, as trans convivem mais umas com as outras, no universo trans, raramente têm amizades com pessoas cis. E é importante para isso, para estarmos inseridas.”
O Coletivo Trans Sol é um exemplo de como a moda pode ser uma aliada na inclusão social da comunidade LGBT+ e de pessoas em situação de vulnerabilidade. Se você gostou e quer ajudar, nossa dica é ficar de olho no e-commerce deles. Por aqui, nós estamos pirando nas peças estilosas! 😉