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A moda como ferramenta de descoberta e autonomia para pessoas não binárias

Não binariedade ultrapassa os limites de gênero e encontra na expressão estética uma atitude política

Por Sofia Duarte Atualizado em 27 jan 2023, 10h51 - Publicado em 26 jan 2023, 14h00

Usar saia não te faz mais ou menos mulher. Usar camisa não te faz mais ou menos homem. A sociedade binária dita quais roupas e atitudes são lidas como masculinas ou femininas desde cedo, a partir dos genitais com que nascemos, mas há quem não se encaixe nesses padrões e estereótipos limitantes. As pessoas não binárias, que se incluem no guarda-chuva da transgeneridade, quebram essas expectativas ao entenderem que sua identidade de gênero ultrapassa as margens das identificações apenas como homem ou como mulher.

Dentro desse contexto, entendemos que a moda e a beleza, que, muitas vezes ainda estão a serviço de uma sistema cisgênero, são utilizadas de formas diferentes e nada tradicionais por pessoas não binárias, que brincam e exploram as possibilidades das roupas e das maquiagens para se sentirem mais confortáveis em seus próprios corpos. Em entrevista à CAPRICHO, Bryanna Nasck, Juví e Nick Nagari, que são criadores de conteúdo, compartilham suas experiências entre a descoberta da identidade não binária e a expressão através de ferramentas da moda e da beleza.

A identificação como pessoa não-binária

Bryanna Nasck lembra que a primeira vez que se sentiu diferente foi com 6 anos de idade e, depois disso, os questionamentos se tornaram cada vez mais profundos. Aos 14 anos, se assumiu como um garotinho gay, mas percebeu que as dúvidas não paravam na sua orientação sexual; aos 17, já tinha se aprofundado na comunidade LGBTQIAP+, e foi conversando com uma amiga trans que entendeu que era uma pessoa não binária. “A partir daquele momento, eu comecei a ter paz para explorar e entender exatamente quem eu era”, afirma.

Juví recorda que, na infância, também percebia quem era, mas ainda não tinha nome e trancou aquele pensamento dentro de si. Ela conta que teve essa percepção a partir de desenhos que assistia e personagens que tinham traços de não binariedade, como Shun, dos Cavaleiros do Zodíaco, Sesshomaru, do Inuyasha, e Ele, das Meninas Superpoderosas, além da guitarrista Mana, da banda japonesa Malice Mizer. “Eu percebia que não era um cara, nem uma mina, e gostava daquilo. Mas isso ficou trancado dentro de mim, porque eu fui uma pessoa evangélica até os 22 anos”. Durante a pandemia, em um período de reclusão, deparou-se com diversos influenciadores que se consideram não binários nas redes sociais, e inclusive com o canal Contrapoints, da YouTuber Natalie Wynn, e seu vídeo chamado Transtrenders, que apresentou a Juví o termo não binariedade. “No mesmo dia em que vi esse vídeo, tinha ficado com uma menina que esqueceu uma meia-calça em casa. Aí, eu falei: ‘E se eu experimentasse essa meia-calça?’. Fui conversar com meu irmão e disse que achava que eu era não binária, e ele respondeu que fazia sentido.”

Nick Nagari declara que seu gênero sempre foi ligado à sua raça, “porque ser uma menina e ser uma menina negra são coisas bem diferentes”. Ele narra ter sofrido os efeitos do racismo antes de tudo, uma vez que sua cor de pele é sua característica mais aparente. “Moro em um bairro de classe média, estudei em escola particular com bolsa e sempre fui cercado de pessoas brancas. […] Gênero, para mim, era uma coisa meio estranha, porque eu achava que era uma menina, mas não do jeito de todas as meninas que eu convivia. Foi um processo, e só no Ensino Médio, quando eu entendi o que era racismo, e aí eu entendi a minha bissexualidade, que era uma coisa mais urgente, depois eu pensei que faria mais sentido me colocar de uma outra forma. Porque menina mesmo eu nunca me senti, nunca me deixaram. A experiência da mulheridade não é permitida para pessoas como eu. Eu poderia simplesmente dizer que esse espaço também é meu, que é o que o feminismo negro faz brilhantemente, mas eu achei que fazia mais sentido na minha experiência pessoal procurar um outro espaço que me acolhesse.”

A relação da moda com a não binariedade

“A primeira vez que eu usei uma peça dita como feminina, uma saia de oncinha, foi quando eu comecei a trabalhar por volta dos 19 anos. Foi difícil, porque, no início desse processo de exploração da minha identidade, minha mãe tinha muitos conflitos com o uso de estereótipos do gênero feminino”, diz Bryanna. No entanto, foi através da maquiagem, com pequenos itens, que ela encontrou uma forma de explorar as possibilidades de construir sua própria expressão de gênero. “A moda e a beleza empoderam o nosso ser. A gente consegue identificar através das culturas e dos aglomerados sociais como a expressão de gênero, a forma como as pessoas se arrumam, a forma como as pessoas se vestem, se pintam, que prendem seus cabelos, que cortam ou não seus cabelos, as identificam dentro da sua comunidade. Isso tem um valor muito importante na nossa configuração social, logo esse processo de beleza é uma ferramenta fundamental de empoderamento, de liberdade e de autonomia para que as pessoas não binárias e pessoas trans tenham a capacidade de se sentir confortáveis dentro dos seus próprios corpos.”

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Duas fotos da criadora de conteúdo Bryanna Nasck em fundo rosa, lilás, laranja e amarelo
Bryanna Nasck @bryannanasck/Arquivo Pessoal/CAPRICHO

“A decisão de explorar esses estereótipos pode resultar em ataques, porque a sociedade é cheia de ignorâncias e preconceitos. Mas esses ataques não tiram dessas pessoas o prazer de se sentirem bem consigo mesmas. Essa é a parte essencial da moda e da beleza, de poder dar essa força, essa superconfirmação para si mesmo de como você se sente confortável com a sua própria existência. Um batom, uma maquiagem, um lápis, uma roupa não são apenas itens, mas armaduras que as pessoas utilizam para enfrentar o mundo que tem tanta resistência, tanto ódio para jogar sobre seus corpos”, completa.

“A partir da não binariedade, eu me libertei. Mas também entendi que não preciso corresponder ao que esperam de uma pessoa não binária”

Quando se identificou como não-binário, Nick pensava que deveria se vestir “como um menino” para que ele fosse validado como uma pessoa trans. Usava bermudão, camisa e blusa preta para não chamar atenção ao peito. Aos poucos, foi perdendo a sua essência de chamar a atenção e querer mergulhar no colorido. “Nem toda pessoa não binária quer ter uma aparência neutra, até porque a neutralidade na sociedade é completamente branca e magra.” Após reconhecer que estava se vestindo pensando nos julgamentos, Nick começou a se libertar e a se permitir entender o que realmente queria usar. “Nesse processo, eu também passei a ser uma pessoa gorda, então isso começou a ser uma questão, entender em quais lugares eu posso comprar. […] Recentemente, me descobri no colorblock, e isso virou meu traço de personalidade, e hoje falo que sou afropaty, que é esse rolê mais arrumadinho. A partir da não binariedade que eu me libertei, mas também entendi que eu não preciso ser algo por ser não binário. Eu não preciso corresponder ao que esperam de uma pessoa não binária.

Juví enfatiza que a não binariedade vai vai muito além de tecido. “É sobre a maneira com a qual eu me identifico mesmo. E eu acho que é muito por conta de observar roupas dos personagens que eu gostava e, depois, da minha experiência de me expressar também através das roupas que eu visto, mas não só isso. […] Uma pessoa binária, uma pessoa cisgênero, pode ter uma visão de mundo não binária. Por exemplo, quando a gente vê o Harry Styles usando um vestido, ele não é uma pessoa não binária. É um homem, mas ele tem uma visão de mundo não binária, de usar vestido, pintar as unhas… E isso não muda nada. É uma visão de pensar que é só roupa e tinta e por aí vai, isso não influencia nem no caráter da pessoa, ninguém é melhor ou pior por fazer isso.”

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“Eu, enquanto pessoa que me entendia como homem e que a sociedade às vezes pode ter uma leitura minha como uma pessoa do gênero masculino, às vezes as pessoas, por virem que eu me considero não binária e que naturalmente eu me conecto com coisas que são ditas do universo feminino, esperam uma delicadeza, uma noção de feminilidade no falar, no agir, no tipo de piada e no tom de voz que supostamente não pertencem ao universo feminino, quando, na verdade, pertencem. Tudo pertence a quem quiser que pertença. Então, foi justamente desapegar dessas caixinhas que as pessoas colocam e ser do jeito que eu quero, vestir o que eu quero, falar o que eu quiser e ser quem eu sou mesmo. A questão de gênero vem nessa, quando entendemos quem a gente é e quer ser no mundo e como a gente se expressa e estar bem segura disso e não se preocupar com o que a sociedade espera”, completa a criadora de conteúdo.

A moda como aliada

Juví vê na moda uma peça importante para ajudar a amenizar as disforias corporais sofridas por muitas pessoas trans. “A moda e as suas possibilidades, de recortes e caimentos, podem produzir uma sensação de conforto e aplacar disforias, que de fato é a pior coisa que pessoas trans sentem enquanto pessoas trans.”

“Se a gente pensa a moda como algo político, a roupa precisa ser inclusiva”

Por outro lado, ainda se trata de um mercado que está longe de, na prática, ter a representatividade ideal. “Uma marca de tênis quis fazer publicidade comigo relacionada à visibilidade LGBTQIAP+ e, aí, eu fui ver e todos os números de calçados femininos iam apenas até o 38. A marca tem que entender que ela não pode ser transfóbica. E isso vale não só para inclusão de gênero, mas para pessoas que têm corpos diferentes no geral, a gente precisa se sentir representada. Se a gente pensa a moda como algo político, a roupa precisa ser inclusiva.” Para Juví, o mercado da moda ainda será binário, uma vez que as marcas estão pensando no que vende mais. “É uma questão básica de continuar ganhando dinheiro e cada vez mais dinheiro. Isso não vai mudar. O capitalismo impede isso estruturalmente. Pensando na individualidade das pessoas, acho que as pessoas estão desapegando cada vez mais de comprar roupas porque estão na seção masculina ou feminina, principalmente pensando em pessoas mais jovens. Isso é uma grande transformação que a geração Z tem, e precisamos falar mais sobre o assunto para promover essa consciência. Percebo que, hoje em dia, quando temos ídolos como Pabllo Vittar e Gloria Groove, isso já se desmancha um pouco na sociedade. A presença de drags, trans e pessoas não-binárias na mídia vai ajudando no inconsciente de não ter essa distinção binária.”

Duas fotos da criadora de conteúdo Juví em fundo vermelho, rosa e verde
Juví @oijuvi/Arquivo Pessoal/CAPRICHO
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Bryanna Nasck reforça a ideia de que uma roupa não está atrelada a um gênero específico, o que existe é um conceito social que tenta limitar a utilização daquela peça. “Ainda há quem tenha preconceito com pessoas do gênero masculino que utilizam saias ou maquiagem. A gente precisa retirar esses estigmas que são tão fortes de uma doutrinação binária, que sem dúvida tem relação com os mais de 2 mil anos de influência cristã que vivemos, para que a gente consiga entender que a moda e a beleza não estão limitadas a gênero, mas estão lá fornecendo ferramentas que você pode ou não utilizar para expressar quem você é. Não use da sua limitação pessoal para limitar, ridicularizar ou oprimir e impedir que outras pessoas tenham a liberdade de utilizar diversas ferramentas para construir sua própria identidade.”

Para ela, a segmentação binária é reafirmada pelas marcas com o objetivo de converter isso em vendas, e, portanto, a força da mudança também está na subjetividade das pessoas. “Por isso, é tão importante quem tem a ousadia de colocar em cheque e desafiar essas questões, esses estigmas sociais, essas regras não ditas, para que as pessoas consigam enxergar outras possibilidades de existir, e que outras formas de existir se tornem comuns, possíveis e respeitadas.”

Nick Nagari também concorda que a moda continua sendo feita para um tipo de corpo específico. “Hoje, tudo que eu já vi sobre moda agênero é simplesmente largo. E isso é ignorar que as pessoas podem querer vestir outros modelos e que a moda tem que, a partir do momento que há demanda, se adequar um pouco a isso.”

Permita-se explorar as possibilidades

Nick afirma que, para pessoas que estão começando a se identificar como não binárias, sua primeira fala seria: “Você não está sozinho. Existe uma comunidade.” Já em relação à moda, a dica é permitir se descobrir. “Você pode mudar completamente, nada é definitivo. Pode assumir um estilo agora e, depois, descobrir que não era aquilo, descobrir que você quer mesclar dois estilos diferentes. A gente já quebrou a principal caixinha, então se livra de todas as outras que vai dar bom.”

“A gente já quebrou a principal caixinha. Então, se livra de todas as outras”

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Ele ainda reitera a importância de exigir o pronome que você desejar, independente do que você estiver vestindo. “Quando eu me entendi trans, às vezes, se eu estava me vestindo de um certo jeito, eu não me sentia confiante para exigir o pronome masculino, porque achava que poderia gerar alguma confusão. Esse processo passa por autoconhecimento, porque, se não, a gente começa a apartar todas as nossas escolhas com base na forma que os outros vão lidar. Você tem direito de se vestir como quiser e, ainda assim, exigir o pronome que você quiser. A gente não está pedindo um favor, o pronome não precisa de um pré-requisito, se você se sente confortável de um jeito, as pessoas têm que te chamar desse mesmo jeito. Não caia nessa de que você precisa estar o mais másculo possível ou o mais feminina possível. Ter dignidade básica é ter o nome e pronome respeitados.”

Duas fotos do criador de conteúdo Nick Nagari em montagem com fundo lilás, laranja, rosa e azul
Nick Nagari @nicknagari/Arquivo Pessoal/CAPRICHO

O conselho de Bryanna é: permita-se. “Você precisa ter carinho com a sua própria existência, compaixão consigo mesmo e entender que você cresceu em um mundo que não te constrói para te permitir ter um pensamento progressista, sem preconceitos, que te faça abraçar o diferente. Todos esses estigmas que foram impostos pela sociedade podem se reverter para você mesmo. Então, é importante que você se permita tentar e explorar. Tem vontade de passar um lápis de olho? Passe. Tem vontade de usar uma peça que é dita como masculina ou feminina? Comece usando ela em um local em que você esteja confortável, no seu quarto, dentro da sua casa, na casa de amigos, em festas específicas em que você estará seguro. Procure ferramentas para poder explorar sua própria vida e entender aquilo que te faz feliz.”

Juví recomenda que você procure o apoio de amigos que te amam e que entendem esse processo e, além disso, um truque para você começar a se sentir confortável com roupas diferentes. “Vá a uma loja, pegue uma sacola e coloque roupas que você normalmente não pegaria, mas que você gosta muito. Vá ao provador, vista as roupas, tire fotos e guarda para você. Você vai começar a ficar mais confortável com aquilo que você quer usar de verdade. Conforme você for usando, mais você vai entendendo e se enxergando nisso e vai ficar mais fácil.

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Não binariedade ultrapassa os limites de gênero e encontra na expressão estética uma atitude política

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