Talibã: o que é, como tomou novamente o poder e por que ameaça as mulheres
Após retirada das tropas norte-americanas do Afeganistão, o grupo retomou o poder da capital do país, alavancando uma enorme crise política e humanitária
Nos últimos dias, notícias sobre o Afeganistão começaram a estampar veículos de comunicação em todo o mundo. Em menos de 24 horas, o Talibã, grupo extremista que governou o país há 20 anos, voltou a ocupar a capital Cabul, fazendo com que o agora ex-presidente Ashraf Ghani deixasse o país após forças da organização radical cercarem seu palácio. Assim como ele, milhares de cidadãos começaram a agir de maneira desesperada, invadindo o Aeroporto Internacional Hamid Karzai, lotando a pista de voo e se pendurando em aviões para tentar de qualquer jeito deixar a sua Pátria. Aqueles que não conseguiram fugir por ar, tentaram a sorte por terra, o que resultou em uma evacuação em massa pelas estradas.
Algumas nações se manifestaram e tomaram medidas durante as últimas horas. “Isso aconteceu mais rapidamente do que prevíamos”, disse o secretário de Estado dos Estados Unidos, Antony Blinken. Os EUA já organizaram a retirada de diplomatas norte-americanos do território afegão e assinaram um apelo, acompanhados de 60 países, pedindo para que o povo que quisesse deixar o país tivesse permissão. A Alemanha também já está retirando seus diplomatas do Afeganistão e enviou aviões, e o Reino Unido emitiu um alerta para seus cidadãos deixarem o país. Ministros, ativistas, jornalistas e artistas foram mortos, sendo as mulheres as principais ameaçadas pela tomada de poder do Talibã, uma vez que a organização considera as pessoas do sexo feminino como seres inferiores, que precisam ter ser corpos controlados e serem praticamente invisíveis para a sociedade.
Another Saigon moment: chaotic scenes at Kabul International Airport. No security. None. pic.twitter.com/6BuXqBTHWk
— Saad Mohseni (@saadmohseni) August 15, 2021
O QUE É O TALIBÃ
O Talibã é um grupo extremista que surgiu há três décadas e governou o Afeganistão entre 1996 e 2001, ano em que foi expulso do poder por forças lideradas pelos EUA. O grupo foi formado em meados dos anos 90, a partir de ex-guerrilheiros mujahidin, que lutaram na Guerra Afegã-Soviética, entre 1979 a 1989, contra forças soviéticas. Eles foram armados pelos norte-americanos e treinados pelo Paquistão, com o objetivo de impor sua própria interpretação da Lei Sharia.
Apesar desse “flerte” inicial, nos anos 90, os EUA começaram a sofrer uma série de ataques da Al-Qaeda. Então, em 2001, eles invadiram o Afeganistão sob a suspeita de que o país refugiava e até bancava o líder Osama Bin Laden. Com a ocupação, os norte-americanos tiraram o Talibã do poder e organizaram novas eleições. Nas duas décadas seguintes, o governo dos EUA destinou US$ 83 bilhões e movimentou quase 100 mil soldados. A invasão e a guerra levou à morte de mais de 200 mil pessoas no território e, segundo estimativa da Universidade de Brown, 71 mil civis foram mortos.
Desde o mandato de Barack Obama, com a falta de propósito e os altos custos, começou a existir a sinalização de uma possível retirada das forças norte-americanas do Afeganistão, que foi assinada no governo de Donald Trump e concretizada neste ano, durante o mandato de Joe Biden. Especialistas apontam que a retira em si era um tanto quanto inevitável e não foi um erro, apesar de muitos falarem em “traição”. O problema foi o fiasco da implementação das tropas em território afegão.
Importante também destacar que muitos especialistas enxergam a saída dos EUA como estratégica, uma vez que a China tentava há tempos negociações com o Talibã, uma organização rica e poderosa, com o intuito de unirem forças em prol de interligações políticas internacionais. A Índia também é um país que mantinha relações com o grupo extremista.
A VOLTA DO TALIBÃ
Nos últimos quatro meses, o grupo extremista conseguiu unir mais de 85 mil combatentes e retomar o poder sobre as principais cidades do país, incluindo a capital, Cabul. Muito se fala na volta do Talibã, mas o grupo nunca deixou, de fato, de existir. Entretanto, o conflito ficou controlado por certo tempo, especialmente pela presença de militares norte-americanos no Afeganistão.
Após a ocupação de Cabul, o grupo radical disse que os direitos das mulheres estão garantidos, mas a aposta é que essa afirmação não passe de uma manobra política para se consolidar no poder com o apoio de outras nações e líderes locais poderosos. O futuro e a vida das mulheres está em perigo, e isso já transparece na atitude de muitos donos de comércios, como salões de beleza e lojas de roupa, que tinham fotos de modelos mulheres estampando suas lojas e estão “apagando” essa realidade com tinta, como é possível ver na imagem acima.
“Nossos amigos vão ser mortos, nossas mulheres não terão mais direitos”, disse uma passageira afegã que desembarcou na Índia, para a BBC, sobre o medo que ela e outras milhares de mulheres enfrentam em relação ao retrocesso de seus direitos, um atraso de 200 anos, de acordo com a ativista afegã Mahbooba Seraj, fundadora do Afghan Women’s Network.
A cineasta Sahraa Karimi também se pronunciou sobre o que pode ser o futuro das mulheres, caso o Talibã se consolide no poder. Ela, conhecida por ser a primeira e única mulher a ter um doutorado em Cinema no país, disse: “Nas últimas semanas, o Talibã conquistou o controle de muitas províncias. Eles massacraram nosso povo, sequestraram muitas crianças, venderam meninas como noivas para seus homens, assassinaram uma mulher por seu traje, torturaram e assassinaram um de nossos amados comediantes, assassinaram um de nossos poetas e historiadores, assassinaram o chefe da Cultura e dos Meios de Comunicação do governo… O Talibã tem brutalizado nosso povo durante todo o processo das negociações [com os EUA]. Tudo que trabalhei muito para construir como cineasta em meu país corre o risco de acabar. Se o Talibã assumir o controle, eles vão banir toda a arte.”
A LEI SHARIA
A Sharia é interpretada de uma forma própria pelo Talibã e usada para justificar o controle sobre os corpos das mulheres. Não existem “leis islâmicas”, como já garantiu o Sheikh Mohamad Al Bukai diversas vezes, mas existem, como em toda religião, extremistas que deturpam crenças e as interpretam de sua maneira, como é o que ocorre com o Alcorão.
Então, de acordo com a interpretação do Talibã, que é um grupo radical, a Sharia permite que mulheres sejam apedrejadas, torturadas e mutiladas caso desobedeçam algumas regras, como não usar a burca, sair às ruas desacompanhadas, terem relações sexuais fora do casamento, se entregarem a caprichos estéticos, como fazer as unhas, mostrarem o tornozelo, darem risada em voz alta, etc.
Além disso, a elas fica proibido o direito a educação, uma vez que são vistas como inferiores com relação aos homens, não podendo trabalhar e praticar atividades físicas ou relacionadas à arte. Elas não podem aparecer na televisão ou falar no rádio, nem construir nenhum tipo de independência.
O TALIBÃ E A MALALA
Para entender como essa tomada de poder deve afetar a realidade do país, vale contextualizar que o responsável pelo ataque a Malala Yousafzai, em 2012, foi o Talibã. Tudo começou em 2008, quando muitas famílias foram forçadas a fugir do Vale do Swat, no Paquistão, após o grupo radical tomar conta da região e forçar meninas a pararem de frequentar a escola. Nos anos seguintes, Malala começou a se posicionar pela importância da educação para as mulheres com o apoio do pai e sua voz começou a ser mundialmente conhecida. Em 2012, aos 15 anos, ao voltar da escola, em que se arriscava todos os dias em prol de um futuro melhor para ela e tantas outras, foi baleada com um tiro na cabeça.
Mesmo após o atentado, que deixou Malala com sequelas, sem contar que quase a matou, o que era justamente o que os extremistas queriam, a ativista não desistiu de defender os direitos das mulheres. Em 2014, ela ganhou o Nobel da Paz. A paquistanesa também criou a Malala Fund, que ajuda milhares de garotas ao redor do mundo, inclusive brasileiras, a conquistarem o direito à educação.
+: A vingança perfeita de Malala Yousafzai é educar até quem não quer ouvi-la
Atualmente em Oxford, onde termina seus estudos na universidade, a ativista usou as redes sociais para se pronunciar sobre o terror que é ver o Talibã a um passo de novamente assumir o poder no Afeganistão e em outras regiões do Oriente Médico: “Estou profundamente preocupada com mulheres, minorias e defensores dos direitos humanos. Potências globais, regionais e locais devem pedir um cessar-fogo, fornecer ajuda humanitária urgente e proteger refugiados e civis.”
We watch in complete shock as Taliban takes control of Afghanistan. I am deeply worried about women, minorities and human rights advocates. Global, regional and local powers must call for an immediate ceasefire, provide urgent humanitarian aid and protect refugees and civilians.
— Malala (@Malala) August 15, 2021
A VISÃO OCIDENTALIZADA DA BURCA
O “X” da questão não está no Islamismo, mas na interpretação extremamente perigosa de grupos como o Talibã – e como ele usa sua visão de mundo para justificar a violência e a dominação das mulheres mulçumanas. Muito se fala sobre a imposição do uso da burca, mas é preciso ir além. A obrigatoriedade da peça, que é conhecida como “o véu que separa o homem de Deus”, tem caráter religioso e político, mas está distante de ser o ponto principal dessa discussão. Neste momento, é preciso romper a visão ocidentalizada de “salvadores da Pátria” e entender que o protagonismo da discussão é das feministas islâmicas, porque elas que sabem, a partir das suas próprias vivências, o que desejam construir no cenário político local. Elas precisam do apoio de todos? Sim, mas o suporte não pode vir carregado de intolerância.
+: Modelo muçulmana usa seu hijab em campanha de produtos de cabelo
Os direitos femininos que estão em risco e a possibilidade do apagamento da identidade da mulher muçulmana é gravíssimo e vai além da imposição do uso da burca e do hijab – que é de escolha da mulher, dependendo da realidade em que está inserida. Para resistir ao Talibã, e pela preservação dos direitos humanos, é preciso que o mundo olhe para essas mulheres e para o que está ocorrendo no Afeganistão.