Em 2018, o japonês Akihiko Kondo, de 35 anos, casou-se com um holograma de Hatsune Miku, de 16 anos, uma cantora virtual japonesa desenvolvida pela Crypton Future Media.
O casamento ocorreu em Tóquio e o noivo desembolsou uma quantia de ¥2 milhões (cerca de US$ 75 mil) para realizá-lo. Além de bonecas da personagem, Kondo tinha em casa um software Gatebox – que foi descontinuado neste ano, para tristeza do homem -, que permitia que ele conversasse com sua esposa.
“Nunca a traí. Sempre fui apaixonado pela Miku”, contou o japonês à AFP. Infelizmente, Kondo não contou com o apoio da mãe, mas a união foi amplamente veiculada pela mídia e teve a presença de 40 pessoas, entre amigos e familiares.
O que é a fictosexualidade?
Akihiko Kondo é uma pessoa fictosexual, ou seja, ele sente atração física e amorosa por personagens fictícios, normalmente em 2D, como mangás e animes.
De acordo com um artigo publicado em 2021 pela National Library of Medicine, do National Institutes of Health, a fictosexualidade é um dos guarda-chuvas da comunidade LGBTQIA+. Para muitos, ela tem algum tipo de relação com a assexualidade, uma orientação sexual que designa pessoas que não sentem atração sexual por outras – podendo elas viverem ou não relacionamentos amorosos.
Dentro da fictosexualidade há algumas subdivisões. Existe, por exemplo, aqueles que só se atraem por personagens de quadrinhos e livros, conhecidos como “cartosexuals”. Os “inreasexuals”, por outro lado, sentem atração por personagens de TV, séries e filmes.
Não seria todo mundo um pouco fictosexual?
Não. A fictosexualidade é uma orientação sexual – apesar das muitas discussões sobre a questão, inclusive dentro da própria comunidade. No caso de Akihiko Kondo, ele é um homem cisgênero, heterossexual e fictosexual. Ou seja, ela se identifica com o gênero que lhe foi atribuído no nascimento [identidade] e sente atração por personagens fictícias femininas.
Quem nunca leu um livro e teve uma crush por algum personagem? Ou se apaixonou por alguém de um filme ou seriado? Normalmente, esse interesse é sentido também por pessoas reais. No caso dos fictosexuas, não há interesse em outros seres humanos, no sentido romântico e sexual da palavra.
A fictosexualidade é uma doença?
Não, apesar dos estigmas e julgamentos, a fictosexualidade não é considerada uma condição pelo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) da Associação Psiquiátrica Americana.
Aqui, cabe um adendo: no manual, a fictosexualidade é tratada como fictofilia, sendo que o sufixo “filia” exprime a ideia de afeição, gosto ou preferência – não tendo nenhuma relação com condição ou doença.
Porém, do ponto de vista da psicanálise, a fictosexualidade é uma distorção da identidade sexual, como explica Araceli Albino, Doutora em Psicologia pela Universidad Del Salvador e Presidente do Sindicato dos Psicanalistas do Estado de São Paulo. “Há a predominância do mecanismo primária de idealização. O sujeito fica fixado no imaginário, e cria um objeto que se pode desejar incondicionalmente e de uma única via. Não tem desejos diferentes do seu, não discorda, não fala, o desejo está à mão a hora que quiser. É viver o tempo todo no gozo, só no princípio do prazer, e isso é mortífero. É uma relação de uma única via, não existe o outro, e o humano necessita da existência do outro“, alerta.
Araceli ainda pontua que essa falta de interação com o outro indica traços patológicos na organização psíquica. Contudo, ainda assim, a fictosexualidade não é vista como uma doença. “A psicanálise tem uma visão muito diferente do Manual Diagnóstico e Estatísticos de Transtornos Mentais em relação aos sintomas. Não se fala em doenças, mas em mecanismo de defesa psíquica, ou seja, estes traços é o modo em que este sujeito encontrou para viver. Então, de qualquer forma, a psicanálise não lidaria com estes sintomas como sendo uma doença, mas sim uma defesa contra uma dor maior, que é de ordem inconsciente. Mesmo eles acreditando que estão vivendo uma paixão por esses objetos fictícios, essa paixão é um sintoma, pois existe uma negação da realidade e do afeto amoroso que dinamiza a vida humana“, esclarece a especialista.
Apaixonar-se por personagens menores de idade não é problemático?
Cada caso é um caso, então não é possível diagnosticar Akihiko Kondo à distância, por exemplo. Até porque não sabemos explicitamente se a relação do japonês com Hatsune Miku era estritamente romântica ou envolvia também desejos sexuais.
No Japão, contudo, o relacionamento entre seres humanos e bonecas de silicone tem crescido consideravelmente.
Profissionais da área contam que as bonecas são desenvolvidas artesanalmente e que cerca de duas mil são vendidas no país todos os anos. Cada uma custa, em média, US$ 6 mil.
Graças à tecnologia, o material utilizado para confeccioná-las se assemelha cada vez mais à pele humana, sem contar que, geralmente, partes como cabeça e vagina costumam ser desmontáveis. Ou seja, dá para personalizar a boneca dependendo do desejo e do gosto do cliente.
É impossível, entretanto, não reparar que as bonecas de silicone têm sempre uma aparência bastante jovial, muitas com corpos de adolescente. O próprio Kondo, já um homem feito, se apaixonou por Miku, um holograma criado com base em uma cantora de 16 anos de idade.
“Esta questão de eleger uma boneca de silicone como objeto sexual, principalmente com aparência jovem/infantil, pode indicar um traço da estrutura perversa de pedofilia. Cria-se uma fantasia de se relacionar”, alerta a psicanalista Araceli Albino, que aproveita para reforçar como a “tendência de relacionamento” está diretamente ligada à hipersexualidade dos corpos femininos, à objetificação das mulheres e até mesmo à cultura do estupro.