Não se fala em outra coisa nas redes sociais a não ser o podcast A Mulher da Casa Abandonada, lançado pela Folha no dia 1º de junho. Ele narra uma reportagem investigativa feita pelo jornalista Chico Felitti, que já viralizou com outros trabalhos, como com o texto, que publicou em 2017 no BuzzFeed News, intitulado “Fofão da Augusta? Quem me chama assim não me conhece”.
Mas o que contribuiu para o sucesso da história? Além da brilhante identidade visual da capa do podcast e da forma como a trama real é narrada, de um modo bastante misterioso, que faz o ouvinte contar os minutinhos para o lançamento do próximo episódio, a internet, mais uma vez, foi a grande catapultadora do projeto.
A protagonista da trama, que se autointitula Mari, acabou causando certa fissura no público, que transformou a casa abandonada em Higienópolis, um bairro nobre de São Paulo, no mais novo ponto turístico da cidade. Até trend no TikTok o podcast impulsionou!
gente, a mulher da casa abandonada não é um meme, não é ponto turístico para visitar. É a história de um terrível crime, de uma pessoa que nunca pagou por ele. Segurem suas ondas. pic.twitter.com/qmtz3ZquCE
— cacaunsada (@cacauirrita) 2 de julho de 2022
A tal da Mari também virou meme nas redes sociais, algo bastante preocupante se levarmos em conta o fato da mulher ser uma foragida da polícia, por manter durante anos uma funcionária em condições análogas à escravidão.
A Imprensa também teve sua parcela de culpa, por embarcar, muitas vezes sem ética jornalistica alguma, na onda do momento. “Foi grave também a forma que parte da imprensa tratou o caso: divulgando fotos e nome da pessoa que foi escravizada, que em entrevista para o podcast deixa evidente seu desejo de deixar pra trás essa parte horrível da sua vida. É uma atitude violenta negar esse direito da vítima”, opinam os podcaster Clara Matheus e Leonardo de Oliveira, do mimimidias.
A mulher da casa abandonada é uma criminosa que torturou, explorou, escravizou e deixou em cárcere uma mulher. E agora tinha animais em situação de maus tratos, um deles em situação degradante. Pense nas vítimas dela antes da sua selfie, dancinha o que seja, que torna isso banal.
— Stephanie Ribeiro (@RibSte) July 3, 2022
E sabem de mais uma coisa? Mari, definitivamente, não é quem diz ser…
Quem é a mulher da casa abandonada?
O nome dela é Margarida Bonetti, uma moça nascida em berço de ouro e que mais tarde casou-se com o engenheiro René Bonetti.
O casal decidiu mudar-se para os Estados Unidos e levou consigo a empregada doméstica que havia sido “dada de presente” pelos pais de Margarida – que, inclusive, eram os donos do casarão onde hoje ela mora. Ou, no caso, se esconde.
simplesmente MARGARIDA BONETTI “a mulher da casa abandonada” no quintal dela pic.twitter.com/APb10IPIDP
— ga (@gialbertii) 30 de junho de 2022
Segundo reportagem de Chico Felitti, baseada em muito trabalho de campo e investigações do próprio FBI, a moça que trabalhava para o casal foi mantida por cerca de 20 anos em condições análogas à escravidão. Além de não receber salário, ela era mantida em cárcere privado, sendo uma vítima de agressões físicas e psicológicas. Ela foi, inclusive, impedida de deixar a casa dos patrões para procurar ajuda médica para tratar um tumor.
Por ser analfabeta, a situação da funcionária era ainda mais desesperadora, uma vez que se encontrava em um outro país, bem longe de casa, e doente.
Foi só depois de muito sofrimento que uma vizinha do casal escravocata decobriu o que estava ocorrendo e decidiu ajudar. Após muita movimentação, René passou a ser investigado pela polícia e foi condenado a 6 anos e 5 meses de reclusão, e o pagamento de multas indenizatórias ao Estado e à vítima pelos crimes cometidos.
ouvi o podcast a mulher da casa abandonada, e já circulam fotos da casa dentro, deve ter tantos objetos raros pic.twitter.com/9R80viQCxb
— 🎈 (@danielleborsari) 29 de junho de 2022
Só que Margarida conseguiu voltar para o Brasil no final dos anos 90, antes de ir à julgamento nos EUA. Na ocasião, o pai dela havia falecido e ela veio para o enterro – e nunca mais retornou ao exterior.
Uma vez no país, ela se instalou na antiga mansão de sua família, onde mora até hoje, faz raras aparições públicas e usa desde então, o tempo inteirinho, uma espessa camada de pomada branca no rosto. Por muitas vezes, a figura chegou a ser confundida com um fantasma por moradores da região.
não sei se vcs tão ouvindo a mulher da casa abandonada mas finalmente conseguiram foto da maluca e é BIZARRO pic.twitter.com/X6r2FNtLGW
— rafa rafinha (@larafalia) June 29, 2022
Fontes disseram para o jornalista que a mulher diz ter uma grave doença de pele, mas outras comentaram que já chegaram a ver Margarida sem o rosto camuflado e que sua pele parece saudável.
Margarida pode vir a ser condenada?
O que as pessoas andam mais se perguntando após o podcast A Mulher da Casa Abandonada se tornar um viral é se, finalmente, a “Mari de araque” pagaria pelos crimes cometidos. A resposta é: possivelmente, não.
Isso porque Margarida Bonetti até poderia responder judicialmente no Brasil e vir a ser condenada, mas não poderia cumprir sua pena em território nacional, uma vez que é protegida pela Constituição, que assegura que “nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes da naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei”. No caso, só René possuía a naturalização norte-americana.
Se o crime da mulher da casa abandonada tivesse ocorrido no Brasil, a pena seria de 2 a 8 anos de acordo com o art. 149 do Código Penal.
Se a mulher, porém, tivesse apenas vendido 100 gramas de alguma droga, a pena seria de 5 a 15 anos.
— Caio Paiva (@caiocezarfp) July 1, 2022
Além disso, há o período de prescrição dos crimes. Se fosse acusada pelo crime de “reduzir alguém à condição análoga à de escravo” (Art. 149 do Código Penal), a investigação deveria ser aberta em um prazo de até 12 anos, que é o tempo prescricional do crime.
Se fosse também acusada de tortura, lesão corporal e tentativa de homicídio, o que possivelmente ocorreria, o tempo prescricional para abertura das investigações subiria para 20 anos.
Ainda assim, mesmo se fosse condenada, não poderia cumprir a pena no Brasil.