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Perfis como o de Nego do Borel em “A Fazenda” são um insistente desserviço

Mais uma vez, a Record segue um padrão questionável em troca de audiência, que nós continuamos dando, e que fere o combate à violência contra a mulher

Por Isabella Otto Atualizado em 15 set 2021, 11h39 - Publicado em 15 set 2021, 11h37

Por mais um ano consecutivo, A Fazenda mostra que se reinventa pouco como programa – mas pra que mexer em time que está ganhando, né? Afinal, o reality está em sua 13ª edição. Na última quinta-feira (9/9), os primeiros participantes da nova temporada, que teve início na noite de ontem (14), começaram a ser revelados e, entre eles, o nome de Leno Maycon Viana Gomes, mais conhecido como Nego do Borel.

Montagem de fotos com as imagens de Marcos Harter, Nego do Borel e Biel. Atrás deles, o logo da Record
Marcos Harter, Nego do Borel e Biel: o “legado” nada profissional exaltado pela Record Record/A Fazenda/Divulgação

No dia 14 de janeiro, Duda Reis foi até a 1ª DDM (Delegacia de Defesa da Mulher de São Paulo) fazer um boletim de ocorrência contra o cantor por violência doméstica, lesão corporal, estupro de vulnerável, injúria, ameaça e transmissão de HPV. Os dois se relacionaram por pouco mais de dois anos, uma relação conturbada, que nunca teve o aval dos pais da atriz. Hoje, Duda luta contra a depressão, foi diagnosticada com síndrome do pânico e aguarda decisão da Justiça. Ou seja, Nego do Borel entra em A Fazenda no papel de acusado num inquérito de violência contra a mulher.

Do ponto de vista legal, nada impede que ele participe do reality, protegido pelo princípio constitucional da presunção da inocência, como explica a juíza aposentada e advogada especialista em gênero, Maria Consentino. Entretanto, há impedimentos morais. A advogada criminalista Izabella Borges, co-fundadora do Sentinelas e representante de Duda Reis na Justiça, falou com exclusividade para a CAPRICHO sobre o assunto. “Esses impedimentos morais deveriam ser considerados quando pensamos que se trata de um caso midiático, que desincentiva muitas mulheres em nosso país a denunciarem. Por que denunciar, se o agressor pode ser prestigiado publicamente participando de um reality? Por que denunciar, se a vítima continua sendo exposta e revitimizada? Esses questionamentos são reais. A mulher anônima sente na pele essas mesmas dores ao decidir denunciar e contrariar todo um sistema que ainda prestigia os homens, mesmo aqueles acusados de agredir mulheres”, afirma.

Izabella ainda explica que existe a possibilidade de que o acusado se torne réu durante o programa, isto é, que o Judiciário aceite a denúncia que possa vir a ser feita pelo Ministério Público. Com isso, o denunciado começaria a responder o processo judicial. “Caso isso ocorra, ele poderá ser intimado lá dentro para que apresente a sua defesa. Ou no curso do inquérito, caso seja necessário em razão de alguma diligência que possa vir a surgir”, relata a advogada.

A revitimização da vítima pelo tribunal da internet

Se o funkeiro se tornar réu enquanto estiver dentro do reality, não pode fazer declarações sobre o processo em que está envolvido. “Isso viola a lei, o Código de Processo Penal e a Constituição. Ele tem direito à ampla defesa no processo, não de usar a mídia para se fazer de vítima“, pontua Maria Consentino, que ainda completa dizendo que, se ele vir a se manifestar sobre os autos na condição de réu dentro do programa, “pode caber uma indenização e até um decreto de prisão por estar influenciando testemunhas, uma vez que estará terminantemente proibido de fazer qualquer manifestação em sua defesa”.

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Assim que teve seu nome divulgado pela Record, Nego do Borel já fez questão de se pronunciar sobre o assunto. Em entrevista ao Hoje em Dia, ele disse que não gostaria de falar sobre a ex-namorada, como se isso fosse algo que partisse apenas dele ou de sua vontade. Só que, na sequência, aproveitou o espaço na grande mídia para fazer justamente o quê? Exato, falar sobre a ex, mesmo que sem mencionar o nome dela. “A Justiça vai apurar os fatos, mas algumas coisas que alguém perguntar terei que falar, pois em muita coisa fui injustiçado”, declarou.

“A sensação de revitimização pela opinião pública é latente. Isso acontece porque a versão da Duda acaba sendo confrontada por pessoas que são influenciadas por esse tipo de declaração distorcida. É extremamente comum que a palavra da vítima seja questionada e, assim, que a vítima seja culpabilizada por denunciar. Essa estratégia é uma das primeiras adotadas por homens acusados de violência doméstica. Duda e eu seguimos confiantes. O inquérito policial contém múltiplas provas e acreditamos que em breve ele se tornará réu em razão dos fatos denunciados”, disse Izabella.

Montagem com fotos de Izabella Borges, advogada de Duda Reis
A advogada Izabella Borges, uma das representantes de Duda Reis na Justiça Arquivo Pessoal/Divulgação

Nossa sociedade patriarcal não valoriza a dor da mulher, como destaca Consentino. Consequentemente, dar ibope para emissoras que selecionam nomes polêmicos e questionáveis, mostrando que vale tudo pela audiência, desqualifica e desprestigia a vítima. “São atitudes recorrentes no Brasil. Nós temos que usar a força da internet e da mídia para contestar isso e não aceitar com tanta naturalidade, pois a violência contra a mulher é milenar, histórica e cultural, e vem muito da naturalização dessa postura“, aconselha a juíza aposentada.

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Não vale tudo pela audiência… Vale?

Em 7 de agosto de 2006, a Lei Maria da Penha foi sancionada, estabelecendo enfim que todo o caso de violência doméstica e intrafamiliar é crime. Maria da Penha Maia Fernandes é uma bioquímica cearense que passou 19 anos lutando em busca de justiça contra o ciclo de violência que vivia com o marido, Marco Antonio Heredia Viveros, com quem casou-se nos anos 70. Em 1983, a vítima chegou a sofrer uma dupla tentativa de feminicídio, tendo o marido disparado um tiro nas costas dela enquanto dormia, deixando-a paraplégica.

+: A linha do tempo do feminismo no Brasil de 1827 a 2019

Sua busca incansável por Justiça a transformou em um símbolo da luta contra a violência doméstica, considerada por organizações e governos internacionais como um caso de saúde pública. “A violência contra as mulheres é um fenômeno universal que persiste em todos os países do mundo. A violência doméstica, em particular, continua a ser terrivelmente comum e é aceita como ‘normal’ em muitas sociedades ao redor do mundo. Portanto, erradicar a pandemia da violência de gênero é o verdadeiro desafio do século XXI, muito mais do que qualquer outro tipo de avanço científico, cultural ou tecnológico”, escreve Fernanda Emanuelly Lagassi Correa, agente de Polícia Civil do Estado de Santa Catarina, em artigo científico intitulado A violência contra mulher: Um olhar histórico sobre o tema.

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Para Izabella Borges, não há dúvidas: perfis como o de Nego do Borel em A Fazenda são um desserviço à luta histórica das mulheres pelo reconhecimento dos seus direitos e pelo fim da violência praticada em razão do gênero. “Sabemos que a mídia é o 4º Poder. Há uma responsabilidade enorme ao escolher pautas para repercutir. Essas pautas devem considerar lutas históricas e caminhar para a construção do respeito, da dignidade das mulheres e jamais para revitimizá-las, cooperando para o desincentivo às denúncias que, sabemos, salvam vidas femininas”, pontua.

A advogada de Duda Reis salienta que, embora o caso ainda não se encontre em fase de ação penal, “há um inquérito policial com graves fatos sendo apurado, razão pela qual foi inclusive deferida a medida protetiva de urgência [desde janeiro, Borel está proibido de se aproximar e entrar em contato por qualquer via com Duda, procurar a família dela e comentar em publicações em que ela esteja marcada, em decisão tomada pela juíza Danielle Galhano Pereira da Silva]. Penso que o primeiro passo é que a gente busque desenvolver senso crítico para não sermos manipulados por pautas que revitimizam as mulheres disfarçadas de entretenimento. É nosso dever enquanto sociedade acolher qualquer vítima de violência doméstica. Mulher merece respeito e dignidade”.

Cobrar mais ética e respeito das emissoras é papel de todos aqueles que não mais querem viver em um mundo com tantas injustiças. Há muitos perfis que podem ser explorados em troca de audiência, que não necessariamente ferem questões morais e compactuam com uma realidade em que, a cada um minuto, 25 brasileiras sofrem violência doméstica. Além disso, o Brasil é o 5º país do mundo com mais casos de feminicídio [homicídio praticado contra a mulher em decorrência do fato de ela ser mulher] registrados.

Histórico do programa

Em 2017, o ex-BBB Marcos Harter participou de A Fazenda – Nova Chance, tendo o cirurgião plástico sido escolhido pelo público como vice-campeão do reality. Ele ficou conhecido por participar da 17ª edição do Big Brother Brasil, da qual foi expulso por “indícios de agressão física” contra a participante Emilly Araújo, campeã da temporada, com quem mantinha um relacionamento abusivo dentro do programa. O médico acabou movendo contra a Rede Globo uma ação por danos morais, tendo sido derrotado pela emissora. A decisão foi tomada pela juíza Ana Lúcia Xavier Goldman, da 28ª Vara Cível de São Paulo, e Harter teve que pagar uma multa de R$ 75 mil.

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+: Relembre todas as expulsões que já aconteceram no Big Brother Brasil

Sobre o episódio envolvendo o BBB, o participante foi denunciado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro por seu comportamento violento dentro da casa, mas foi absolvido pelo Tribunal de Justiça. Recentemente, o cirurgião foi acusado por uma funcionária de um hospital por ameaça e perseguição. A Polícia Civil investiga o caso.

Em A Fazenda 12, Biel também foi vice-campeão do reality, perdendo para Jojo Todynho. Foram mais de um bilhão de votos a favor do cantor que, em 2016, foi acusado de assediar Giulia Pereira, na época repórter do Portal IG, durante entrevista. Ele pagou uma multa no valor de R$ 4.400 por injúria, que foi entregue a uma instituição de caridade, segundo proposta do Ministério Público Estadual, e assim a ação foi extinta.

 

Após o episódio, Biel deixou o Brasil e foi passar um tempo nos EUA. Lá, casou-se com a modelo Duda Castro que, em 2018, acusou o funkeiro de agressão física e moral. No mesmo ano, a influenciadora foi detida em Los Angeles, após uma modelo chamada Natalie Kailey dizer que ela havia quebrado uma garrafa de bebida em seu rosto em uma boate. Nesse meio tempo, cheio de polêmicas envolvendo ambas as partes, Biel acabou sendo acusado de assédio e agressão por outras três mulheres, conforme reportagem do jornal EXTRA.

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Durante sua participação no reality, o cantor relembrou o caso envolvendo a jornalista e culpabilizou sua assessora da época, uma mulher, pelo seu comportamento machista: “Falha dela. Na hora, não estava supervisionando”, disse. Em nota, a assessoria tratou logo de tentar consertar a fala do rapaz: “Ele jamais se eximiu de suas responsabilidades quanto a contravenção cometida, se desculpou pessoalmente à jornalista e pagou sua dívida judicialmente”. A reinserção social é um direito de todos, mas fica bem difícil acreditar na remissão da pessoa quando ela, mesmo após pedido de desculpa, segue insistindo em erros semelhantes, aparentemente por puro orgulho.

Será que a sina de Nego do Borel é continuar o legado e se tornar vice-campeão de A Fazenda 13? A gente acha que não, mas diria mais sobre o público que sobre a emissora em si – que tem esse respaldo de sua audiência. Sorte a dele, azar de todos nós.

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Comportamento
Perfis como o de Nego do Borel em “A Fazenda” são um insistente desserviço
Mais uma vez, a Record segue um padrão questionável em troca de audiência, que nós continuamos dando, e que fere o combate à violência contra a mulher

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