Este ano, o termo fake news ficou famoso e até pessoas que nunca tinham escutado isso antes agora usam a expressão em conversas corriqueiras do dia a dia. Mas as notícias falsas prestam um desserviço à humanidade já faz alguns anos. Com a internet e os aplicativos de mensagens instantâneas, esse desserviço foi apenas potencializado. Mas o que as fake news têm a ver com a Aids? Muita coisa.
Em novembro, a atriz Joey King contou que um cara não queria ficar ao seu lado durante um voo porque ela estava careca. “Ele escreveu para a esposa dizendo que estava sentado próximo a uma garota que tinha câncer e que estava com medo de ‘pegar isso'”, relatou a americana, que raspou o cabelo para viver uma personagem na série The Act. Na cabeça desse cara, toda mulher careca tem câncer. Ainda na cabeça dele, câncer é uma doença contagiosa, causada por algum vírus ou bactéria. Ele poderia até não ser um homem preconceituoso, mas se torna um por falta de informação. Ou por sobra de informação errada.
A mesma coisa acontece com a Aids. Desde 1984, quando os Estados Unidos divulgaram que o pesquisador Robert Gallo havia descoberto o vírus HIV, muitos boatos são espalhados por aí sobre a doença. A partir do momento em que esses boatos ganham força, as pessoas tendem a acreditar piamente neles, transformando-os em verdades absolutas. Não existe busca, não existe apuração. As pessoas acreditam em mentiras, se protegem de forma incorreta e acabam mais suscetíveis ao contágio.
“Não se morre mais de Aids” é uma frase que ouvimos com certa frequência. Tem ainda aquelas pessoas que dizem preferir pegar Aids do que ter um câncer, por exemplo. Afinal, o câncer é uma doença maldita que mata. A Aids, se você tomar o coquetel, consegue ter uma boa expectativa de vida… Não?!
A AIDS REALMENTE NÃO MATA?
Ela mata, mas de forma indireta. Como assim? A Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, causada pelo vírus HIV, destrói o sistema imunológico da pessoa contaminada, fazendo com que ela se torne mais suscetível a doenças que não matariam uma pessoa que não tem Aids. Como o “exército imunológico” da pessoa está fraco, ela perde a luta. “Geralmente, os primeiros sintomas da contaminação pelo vírus são as chamadas doenças oportunistas. Ao destruir as células de defesa, o HIV impacta diretamente na imunidade do indivíduo, abrindo caminho para que estas patologias se instalem. Dentre as mais comuns, podemos citar a pneumocistose, a toxoplasmose, o Sarcoma de Kaposi e a tuberculose”, explica a Dra. Nelly Kobayashi, sexóloga formada pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Como a Aids pode ser manifestar até dez anos após o contágio do vírus, a pessoa pode adoecer e já ir à óbito.
A Dra. Nelly ainda conta quais são os principais sintomas da imunodeficiência: “as primeiras reações são febre persistente, tosse seca, garganta arranhada, suor noturno, rápida perda de peso, náusea, queda de energia, entre outras. Muitas vezes, as pessoas ficam anos com o vírus incubado, sem apresentar sintomas. Por isso é sempre recomendada a realização de exames periódicos”.
COMO UMA PESSOA PODE DEMORAR TANTO PARA DESCOBRIR QUE FOI INFECTADA?
Antigamente, usava-se a expressão “grupos de riscos” para identificar as pessoas que estavam mais suscetíveis ao contágio. A expressão, contudo, só estimulou o preconceito velado na sociedade e segregou ainda mais as pessoas. Hoje, não se fala mais em “grupos de risco” mas em “estilos de vida de risco”. Entram nessa lista pessoas que mudam muito de parceiros, que fazem parte da comunidade LGBTQ+, que são profissionais do sexo e/ou usuários de drogas.
Então apenas quem tem esse “estilo de vida de risco” pode ser contaminado com o vírus HIV? Não. Essa é uma notícia falsa que precisa ser desmentida de uma vez por toda. Toda e qualquer pessoa pode pegar Aids. Algumas vivem mais situações em que ficam expostas ao contágio. Outras, menos. Essa falsa ideia de que “apenas homossexuais têm Aids” ou “todo homossexual tem Aids”, herança da época em que o termo “grupos de riscos” era utilizado, faz com que muitos heterossexuais não se protejam porque “nunca vai acontecer com eles”. Só que acontece.
Em 2016, estudos revelaram que a transmissão de HIV entre héteros é a que mais estava crescendo no Brasil. De acordo com a OMS, o número de jovens brasileiros de 15 a 24 anos contaminados aumentou nos últimos anos. As fake news levam a uma falsa sensação de proteção que levam a uma relação sexual desprotegida. Os jovens não estão usando camisinha, sendo que a principal via de transmissão do HIV é a prática de qualquer relação sexual sem proteção, independentemente de haver ou não penetração. “Nesse cenário, a melhor forma de prevenção ainda é o uso da camisinha, embora seu uso esteja ficando cada vez mais impopular”, preocupa-se a Dra. Nelly.
A falta de informação é um dos principais motivos que levam as pessoas a não perceberem que viveram uma situação de risco. Quando elas vão perceber, já estão em um estágio avançado da doença. Qualquer pessoa que tenha vivido uma situação de violência sexual, tido relação sexual desprotegida (principalmente, com um parceiro desconhecido) e um acidente ocupacional com instrumentos cortantes e material contaminado deve procurar um médico, realizar um exame de sangue e ver se precisa se submeter à Profilaxia Pós Exposição.
A AIDS É UM ASSUNTO DE TODOS
Só se elimina uma notícia falsa com outra verdadeira. É preciso discutir o assunto de forma clara e direta, com a presença de profissionais e materiais didáticos seguros. É também preciso evitar lugares comuns. Por exemplo, em pleno 2018, uma matéria como essa abaixo não deveria ser publicada com esse título. O mais correto seria dizer que “O número de gays e bissexuais infectados com HIV/Aids supera novamente o de heterossexuais”, já que, em 2017, o número de heterossexuais infectados havia crescido. Do contrário, toda a discussão sobre preconceito e segregação estimulada pela expressão “grupos de risco” é retomada.
Em 2016, também rolou uma polêmica com relação a uma cena de Malhação – Seu Lugar no Mundo que apresentou uma situação de risco que, na realidade, não era de risco. Casos como esse também estimulam a propagação de fake news. É preciso debater e trazer a discussão para a grande mídia, mas é preciso ter um cuidado redobrado para o serviço não virar um desserviço.
Aids e HIV devem ser assuntos discutidos em sala de aula, dentro de casa, na roda de amigos e na internet. E camisinha tem que usar. Sempre. Indiscutivelmente.