“Meu nome é Gal(…) Nasci na Barra Avenida, Bahia(…) Acredito em Deus, gosto de baile, cinema(…) E se um dia eu tiver alguém com bastante amor pra me dar, não precisa sobrenome, pois é o amor que faz o homem”. Com essas palavras, Gal Costa se apresenta durante a música Meu Nome É Gal, uma composição de Erasmo e Roberto Carlos escrita especialmente para a baiana de Salvador, um dos ícones da Tropicália e um dos maiores nomes da música popular brasileira, que morreu na manhã desta quarta-feira (9), aos 77 anos, após sofrer um infarto fulminante em sua casa, em São Paulo.
Gal, na verdade, nasceu Maria da Graça, no dia 26 de setembro de 1945. Filha de Mariah Costa e Arnaldo Burgos, ela ouviu pela primeira vez, aos 17 anos, João Gilberto cantar, e foi quando tudo mudou em sua vida. Alguns anos depois, foi apresentada a Caetano Veloso, e junto dele, de Gilberto Gil e d’Os Mutantes, começou uma revolução na música brasileira, até então marcada por sambas-canção, pela Bossa Nova e por poucas músicas de cunho social e político. Era tudo muito arrumadinho, tudo muito quadrado.
Foi o tropicalismo que deu o ponta-pé inicial para as canções de protesto e foi Gal que marcou gerações com seus agudos, sua afinação, seu cabelo de leoa e seu jeito de deixar tudo Divino Maravilhoso.
Gal além da voz cantada
Fora a importância musical, a cantora carrega muito forte uma importância social e política. Gal foi uma das primeiras cantoras de sua época a se assumir bissexual, tornando-se um símbolo da comunidade LGBTQIA+. “Meu nome é Gal e não te interessa com quem eu durmo”, disse a baiana em entrevista dada para o Universa em 2018.
A artista era discreta com relação a sua vida afetiva, porque simplesmente achava que havia outras coisas mais importantes a serem discutidas, como sua carreira e o mundo. Gal costumava dizer que era. Ponto. Era o que era. E aquilo não era nada extraordiordinário para se transformar na pauta mais importante de sua vida. As pessoas são o que são. E ponto.
A figura de leoa
Talvez você não saiba, mas Gal Costa foi a única voz feminina que atuou na Tropicália desde a sua criação até sua dissolução. Em outras palavras, ela era a Tropicália, que era um movimento também estético.
A figura da cantora se apresentando descalça, com seu cabelão ao vento e uma flor vermelha gentilmente apoiada sobre uma das orelhas é patrimônio histórico! No artigo Eu sou uma fruta ‘gogóia’, eu sou uma moça: Gal Costa e o Tropicalismo no feminino, publicado em 2014, Rafael da Silva Noleto, da Universidade Federal do Pará, explica a importância da estética da cantora, especialmente do seu cabelo. “A utilização do cabelo como um recurso cênico, carregado de significações simbólicas associadas a Gal Costa, foi explorada pelo artista plástico Hélio Oiticica ao desenvolver a capa e o design gráfico do Long Play (LP) LEGAL (1970), no qual havia uma fotografia onde, dentro dos cabelos de Gal, estão contidos vários ícones da indústria cultural brasileira e mundial pertencentes ao imaginário dos jovens como, por exemplo, Gilberto Gil, Waly Salomão e James Dean. São, na verdade, fotos de personalidades e eventos sociais que representam as tensões políticas, sociais e artísticas de uma época e que, neste caso, também estavam representadas implicitamente pela rebeldia dos cabelos da cantora“.
Gal era sinônimo de rebeldia, mas também de doçura. Gal era sinônimo de força feminina, de potência, de abertura de caminhos. Gal era incêndio apaixonado, mas também era conforto para os corações despedaçados. Gal foi, é e continuará sendo referência. “A garota da voz de veludo”, como escreveu há pouco Rita Lee em postagem despedindo-se da colega.
“O dia em que eu conheci Gal, eu falei: ‘Você é a maior cantora do Brasil’; até hoje eu tenho a mesma opinião”, falou o amigo Caetano Veloso durante uma entrevista dada nos anos 70. Rubel, que trabalhou ao lado da cantora nos últimos tempos, falou sobre Gal ser imensidão e mistério. Sobre ser Sorte. Para Alice Wegmann, Gal está no topo das artistas mais inspiradoras de toda a sua vida. “A voz límpida, o cinema das melodias perfeitas, a atitude revolucionária, a beleza venenosa”, declarou-se Zé Ibarra.
O legado
Em 2017, em entrevista para o Estadão, Gal Costa disse que o futuro seria das mulheres. “Essas mulheres que se destacam, que se empoderam, já fazem naturalmente um trabalho feminista, sem intenção de ser feminista(…) No futuro, a gente vai dominar“, falou.
Na década de 70, mais precisamente em 1973, a cantora lançou o álbum “Índia”, cuja capa é um close na barriga da baiana, que vestia um biquíni vermelho. A foto foi feita por Antonio Guerreiro.
No auge da Ditadura Militar, é claro que a capa foi censurada. E também uma foto do encarte, em que Gal aparece com os seios à mostra. A solução da gravadora foi embalar o vinil com um plástico azul, para driblar a censura. Esta foi a primeira vez em que um disco foi vendido com uma embalagem lacrada pelo mercado.
Histórica, Gal por anos teve seu lugar como mulher e cantora diminuído por causa da liberdade sexual por ela tanto defendida. Aquela velha história do corpo feminino incomodar, sabe? Os outros, nunca Gal, que usava sua figura feminina como forma de luta contra a repressão e o regime militar.
No programa Roda Viva de 1995, a artista disse não ser a rainha da oratória, mas nem precisava. Gal se posicionava cantando, nos palcos, e não tinha medo disso. Gal era uma artista com posicionamento, algo cada vez mais raro em uma sociedade que acha que a neutralidade é a resposta para seguir no topo ao não se comprometer – já se comprometendo.
Vencedora do Prêmio Grammy Latino à Excelência Musical, do Prêmio Multishow e do Troféu Imprensa, com mais de 20 turnês realizadas, mais de 30 álbuns lançados e eleita a 7ª maior voz da música brasileira pela revista Rolling Stone Brasil em 2012, a cantora abriu caminhos na música para tantas outras mulheres e eternizou seu nome como Gal Costa e como Maria da Graça, a voz do Brasil.
Fa-tal, a tal, nada igual, imortal!