Me chamo Marina (a.k.a Mapê), sou jornalista e meu mochilão e eu estamos atualmente isolados no Quênia, na África, e essa é minha história.
Saí do Brasil com alguns propósitos. Sempre fui a louca das viagens e nunca me contentei com a velha fórmula do nascer-estudar-se acabar no vestibular-estudar mais-trabalhar de monte-casar-engravidar-trabalhar mais-morrer. Nada contra quem curte, mas não me perdoaria se não realizasse meu sonho de conhecer o mundo antes. Juntei isso com a vontade de quebrar tabus de outros continentes e de investigar sobre como o Feminino ainda tem sido oprimido em cada país, mas também como tem sido manifestado. Pego depoimentos de mulheres incríveis que encontro no caminho enquanto eu mesma também vou me conhecendo. E vou te falar: não há nada que impeça uma mulher que descobre sua potência! Por isso, lancei na última semana o projeto Womanifests, um blog em que vou registrar as histórias delas e as minhas também.
Comecei a viagem em dezembro de 2019 na África do Sul, onde fui despejada de um Couchsurfing (serviço de hospitalidade com base na internet) e visitei um centro de refugiados. De lá pra cá, parece que vivi mil encarnações. Em Moçambique, curti a virada do ano durante cinco dias num festival pé na areia na praia do Tofo e fiz amigos pra vida. Em Zanzibar, me deparei pela primeira vez com a cultura muçulmana, nadei com golfinhos selvagens no mar e joguei futebol com homens da tribo Masai Mara, que tem uma cultura nada favorável às mulheres, diga-se de passagem. Na Tanzânia, subi o pico do Kilimanjaro, a montanha mais alta da África, acampei rodeada por oito búfalos no safári do Serengeti, visitei uma tribo de viúvas e ajudei a libertar um amigo que ficou preso na cadeia durante 10 dias por uma confusão na fronteira.
Agora estou no Quênia. Acabei de terminar um trabalho voluntário no projeto Hope Designers, que dá aulas de costura e empreendedorismo para ajudar mulheres soropositivas na favela de Manyatta, em Kisumu, a criarem elas mesmas sua fonte de renda. O maior desafio: as 21 participantes só tinham cinco máquinas de costura. O maior milagre: em uma semana, lancei uma vakinha online e arrecadei o suficiente para comprar 17 máquinas novas! Os fundadores ficaram tão animados que vão tentar abrir uma segunda turma, o que dobraria o número de mulheres e famílias atendidas. Como eu disse, não há nada que impeça uma mulher que descobre sua potência.
Ufa! Falei que pareciam mil vidas em uma, né? Mas agora fui forçada a desacelerar pelo mesmo motivo que o mundo também parou, a pandemia de coronavírus. O primeiro caso no Quênia foi descoberto em 13 de março e logo iniciaram uma investigação para rastrear quem teve contato com a vítima. Assim que encontraram outros dois casos nos dias seguintes, logo foram decretadas medidas como o fechamento das fronteiras terrestres e de escolas, fora o pedido de compreensão da população na suspensão de missas (cerca de 80% dela é cristã e pratica a religião fervorosamente).
Nesta semana, chegamos a mais de 50 casos e, na última quarta-feira (25/3), todos os aeroportos foram fechados para voos internacionais, que não entram nem saem mais. Bares foram lacrados e restaurantes só operam no esquema takeaway (comprar e levar). Além disso, decretaram toque de recolher entre 19h e 5h. O governo vem tomando decisões incisivas e rápidas, e o presidente faz anúncios em TV nacional toda vez que determinam medidas novas para comunicá-las, assim como também para atualizar sobre a investigação de casos e reforçar os hábitos de higiene necessários.
No entanto, a quarentena não é mandatória para a população e é um luxo para poucos aqui. Grande parte não tem condições de parar de trabalhar, então as ruas ainda têm movimento. O mercado informal é muito grande, sendo que 80% dele são de mulheres que precisam sustentar suas famílias. Uma frase bastante dita por aqui é “ou é o corona ou é a fome”. Outra coisa que ouço muito são os gritos de “corona” por onde eu passo. A xenofobia vem numa crescente conforme o número de casos também aumenta. Esses dias, peguei um boda-boda (mototáxi) até o mercado e, apesar de ele ter sido amigável, disse que, se outras pessoas vissem, não iriam querer pegar uma corrida com ele depois (porque sou estrangeira).
Não há dúvidas de que todo mundo tem sofrido muito. De todos os lugares em que eu poderia estar, acho que estou no mais seguro. Não sei se foi por causa do medo dos perigos que um alastramento do vírus poderia causar em países com poucos recursos, mas a África, em geral, tem agido rápido no combate e conta com aproximadamente 3 mil casos no continente inteiro, formado por 54 países – veja bem, só o Brasil tem praticamente o mesmo número de infecções. Quanto a mim, por sorte, estou conseguindo me isolar. Um amigo indiano que fiz viajando me ofereceu seu apartamento em Mombaça, cidade do litoral queniano, por tempo indeterminado e num esquema Couchsurfing, sem pagar nada além da minha comida. A mochileira brasileira desesperada com o dólar a R$ 5 respira um pouco mais aliviada.
Só que, esta semana, sofri um baque daqueles: perdi uma amiga que conheci na Tanzânia e que também estava mochilando pela África. Ela cruzou a fronteira de Uganda para o Quênia no último dia possível e deveria ter me encontrado na entrega das máquinas de costura, mas não apareceu. À noite, soube que o quarto caso de coronavírus tinha sido encontrado e fui tomada por uma agonia. Senti que precisava sair de Kisumu no primeiro ônibus que desse. No dia seguinte, quarta-feira, já estava em Nairobi quando ela mandou um WhatsApp contando que tinha acordado com febre e ficou dormindo desde então (por isso o sumiço), mas havia tomado remédio e já se sentia melhor. Ia ficar na cidade mais um tempo até se recuperar totalmente e me encontraria em Mombaça.
No último domingo (29/3), soube que ela tinha falecido. Foi hospitalizada quando não conseguia mais se aguentar em pé. Teve febre, diarreia, dor nas pernas e dificuldade respiratória – o comunicado oficial é de que ela testou positivo pra malária, mas nunca vou saber o que realmente aconteceu. Me senti sem chão, encurralada, como se meu sonho tivesse acabado ali. Ela tinha mais de 48 anos, mas era uma mochileira e ~Dora Aventureira~ como eu. Ainda lembro da sua voz e da risada gostosa, da alegria que ela tinha. Como pode uma pessoa simplesmente não existir mais?
Certeza é a única coisa que não dá para ter agora. Só saio pra ir ao mercado, mas confesso que tenho medo. Não tanto do vírus, mas mais dos humanos. Sou estrangeira e não sei o que pode me acontecer na rua. Muitos já me perguntaram se eu vou voltar para o Brasil e eu considerei a possibilidade, principalmente depois da morte da minha amiga, mas respirei fundo, entendi que eu queria voltar pra zona de conforto por estar me sentindo vulnerável e decidi me manter firme aqui, trabalhando no blog e nas postagens até a situação melhorar e, então, seguir viagem. Ainda pretendo, sim, cruzar o Oriente Médio e rodar a Ásia, mas não sei qual será o próximo país da volta ao mundo – depois do Quênia, eu deveria seguir para a Etiópia, o Sudão, o Egito e a Jordânia, mas, provavelmente, vou ter que repensar essa parte e o restante do roteiro.
Nada é certo, exceto três coisas: (1) não rola ficar sofrendo pelo que não temos controle, é preciso ter paciência e se manter forte; (2) o coronavírus vai ser só mais um capítulo da minha volta ao mundo, não o fim dela; e (3) não há nada que impeça uma mulher que descobre sua potência.
Quem quiser me acompanhar enquanto escrevo essa história, é só me seguir lá no Instagram ou no Womanifests. E lembrem-se: lavem as mãos e, se puderem, fiquem em casa, por favor, mesmo longe dela, como é meu caso.