Neste ano, passamos mais tempo em casa do que gostaríamos ou estávamos acostumadas. Por causa da pandemia de coronavírus, tivemos que reajustar nossa rotina, criar novos hábitos e mudar alguns costumes antigos, que não mais faziam sentido nessa nova realidade. Mas algumas coisas continuaram a mesma, como nosso vício em maratonar séries. Aliás, podemos dizer que nunca antes tivemos tanto tempo livre aos finais de semana para se jogar no sofá e fazer isso!
Entre os muitos lançamentos que agitaram a Netflix em 2020, tivemos O Gambito da Rainha, adaptação de Scott Frank e Allan Scott do livro de mesmo nome publicado por Walter Tevis, em 1983. A trama tem como personagem central Beth Harmon (Anya Taylor-Joy), uma jogadora de xadrez prodígio que faz história em uma modalidade dominada por enxadristas do sexo masculino, precisando lidar com o machismo dentro das competições e seu vício em calmantes e álcool. Icônica, Harmon é uma mulher forte, inteligente, calculista e uma inspiração para outras garotas que, assim como ela, amam xadrez e precisam lidar com aquela sensação de falta de pertencimento. Rainha? Sem dúvida! Mas outra personagem feminina da série merece destaque nesse tabuleiro. Nós estamos falando da lendária Jolene.
Interpretada por Moses Ingram, a personagem nos é apresentada já no primeiro episódio. Ela é uma das crianças do orfanato em Kentucky ao qual Beth é encaminhada no final dos anos 60, após a morte da mãe. A mais velha do local, Jolene também é a única negra da instituição comandada por Helen Deardorff (Christiane Seidel). De início, por culpa da própria trama, que provavelmente fez isso conscientemente, a garota parece ser temperamental, rebelde, ter um comportamento que destoa do das outras meninas – não coincidentemente, todas brancas, comportadas e que são sempre adotadas primeiro.
Parecia que Jolene não teria futuro, e isso foi feito propositalmente, para que cada pessoa que assista ao seriado questione e desconstrua os preconceitos que ainda carrega, em sua maioria pautados em questões raciais. Afinal, a órfã é uma das mais velhas do local porque ainda não havia sido adotada e, em um orfanato em que ela é uma única menina preta e que outras crianças brancas, mesmo mais velhas, que chegam depois dela, são adotadas antes, não existe outra justificativa para isso a não ser o racismo estrutural. Lembrando que, nos anos 60, os EUA ainda viviam um regime de segregação racial, tendo o partido político dos Panteras Negras, que defendia a resistência armada contra a opressão dos negros pelos brancos norte-americanos, se originado em 1966, fundado por Bobby Seale e Huey Newton.
Sempre realista da sua existência e vivência como mulher negra na América dos anos 60, Jolene desde pequena sabia por que estava no orfanato, por que não era adotada pelas famílias majoritariamente brancas, que buscavam crianças brancas e mais novas, e que sofreria racismo também fora dos muros da instituição, quando completasse a maioridade e saísse de lá. Foi a melhor amiga de Harmon quem também sempre alertou a irmã de coração sobre os riscos de se viciar nos calmantes que eram dados às crianças supervisionadas pela Sra. Deardorff. Mais tarde, é Jolene que ajuda Beth quando a enxadrista vai participar de sua primeira aula no clube de xadrez da escola local.
Jolene volta a aparecer nos episódios finais da série. O cabelo alisado dá lugar ao black power (lema dos Panteras Negras), o orfanato é substituído pela faculdade e agora a mulher independente trabalha como assistente jurídica em um escritório de advocacia. “Só há brancos na firma. Me contrataram para acompanhar os tempos. Em vez de uma mulher negra da limpeza, queriam uma mulher negra limpa, de bunda bonita e bom vocabulário”, confessa para Harmon. Na sequência, Jolene diz que deseja se tornar advogada: “Tinha Bolsa de Educação Física, mas quando descobri que o nome da escola era Escola Estadual para Pessoas de Cor, me deu vontade de estudar História, o que me irritou bem mais do que eu já estava irritada. Transferi para Ciências Políticas e estou poupando para estudar Direito”, fala para Harmon. Jolene quer mudar o mundo! “Serei radical”, conta para a amiga (os Panteras Negras eram chamados de radicais, como hoje são chamados aqueles que lutam para combater as desigualdades do mundo pelos que são favorecidos e privilegiados pelo sistema).
Mesmo não tento parecido tanto quanto a protagonista de O Gambito da Rainha, nem tanto quanto outros personagens secundários, Jolene é peça-chave da história em que um dos temas abordados é o papel das mulheres na sociedade. E somos muitas! Somos plurais! Mas, dentro do feminismo, vozes como a da Jolene precisam ganhar destaque e serem ouvidas, pois, ainda hoje, o mundo, por mais cruel que ele seja, ainda é um lugar mais fácil para as Beths e as outras meninas brancas do orfanato.