Por mais um ano, o Big Brother Brasil levanta debates sobre questões sociais e promove reflexões. Afinal, o reality é sobre conviver em comunidade, mesmo que uma parcialmente isolada do mundo. O último paredão, entre Babu, Flayslane e Marcela, polarizou torcidas, ditou oficialmente o futuro do jogo e dividiu as pessoas entre racistas e antirracistas. A Bruna Marquezine, por exemplo, foi acusada de ser incoerente em seu discurso em prol do movimento negro, e racista, ao se declarar #ForaFlay em vez de #ForaMarcela, já que esta teve comportamentos considerados de teor racista no jogo. Toda uma discussão foi iniciada, que não permaneceu apenas no Twitter, apesar de ter sido originada na plataforma. Será que dá pra ser tão 8 ou 80?
Tati Nefertari, estudante de Pedagogia e coordenadora da Biblioteca Comunitária Assata Shakur, de 24 anos, foi tida como a responsável por fazer Bruna Marquezine apagar seu tuíte de #ForaFlay e repensar sua torcida. Em entrevista para a CAPRICHO, Tati explicou o porquê de ter cobrado a atriz: “Bruna foi questionada justamente por, dias antes, ter se posicionado através da campanha ‘Seu Silêncio é Racismo’, que tem o propósito de dizer para pessoas brancas que não se manifestar sobre e contra o racismo também é uma forma de ser racista. Se em um paredão com uma pessoa racista, a gente escolhe tirar uma mulher negra [a Flay], pelo motivo principal de ela ser chata, isso é fechar os olhos para a gravidade do racismo, sim”.
Para a militante do movimento negro, ser racista e compactuar com falas racistas, apesar de serem atitudes diferentes, têm a mesma finalidade de perpetuar o racismo. “Então, enfatizo que compactuar com falas racistas, por ação ou omissão, é ser racista”, opina a estudante, que entende que não dá para ser unânime. “Há telespectadores do sofá [aqueles que assistem ao programa somente pela televisão], que não têm acesso a tudo que temos online, e alguns deles votaram na Flay. Como chamar todos de racistas? Mas, a partir do momento que você tem ciência da violência racista promovida, é preciso se posicionar contra isso”, completa.
Outra voz ativa do Twitter e do movimento negro feminista é a arquiteta e escritora Stephanie Ribeiro, de 26 anos, que também se posicionou sobre o paredão na plataforma, só que com um olhar um pouco diferente do da Tati. Também em entrevista para a CAPRICHO, Ste explicou seu ponto de vista: “A Flay disse que se considera uma mulher negra e foi colocada no paredão por uma mulher negra [a Thelma]. Existe uma tensão entre essas duas pessoas. Tinha gente que queria tirar a Flay porque ela era uma ameaça para a Thelma no jogo. Então, pra mim, é muito difícil dizer que automaticamente uma pessoa se torna racista por ter cogitado eliminar a Flay“.
A escritora contou que chegou inclusive a receber ameaças de morte na rede social por causa do seu posicionamento. “A partir desse paredão, as pessoas iriam dizer se você é seletiva ou uma pessoa racista, e de fato as pessoas estão passando de todos os limites. As coisas estão sendo tratadas de formas superficiais e violentas“, lamenta. Para ela, compactuar com atitudes racistas é, sim, uma forma de racismo. Stephanie ressalta, no entanto, que, quando as pessoas falam em seletividade, ignoram muito a subjetividade humana e as relações pessoais. “Toda pessoa branca dentro de uma sociedade racista é privilegiada pelo racismo, logo ela é educada socialmente para se privilegiar, para reproduzir, para compactuar e para se beneficiar da estrutura racista. A questão é: qual é sua postura em relação a isso?”, questiona.
Bruna Nunes, de 17 anos, da Galera CAPRICHO, é negra e se posicionou #ForaFlay. “Está faltando didática na militância”, pontua. A jovem estudante de Jornalismo lembra que, no paredão Manu contra Prior, foi chamada de racista por algumas pessoas por ter votado no brother, só porque era amigo do Babu. “Eu sou uma pessoa que tenta sempre pontuar coisas problemáticas nos rolês e explicá-las de forma menos agressiva, mas assim mesmo apontaram o dedo na minha cara. Algumas pessoas não estão se dando ao trabalho nem de entender uma crítica, de construir uma dialética. Tudo é motivo para cancelamento“, opina.
Stephanie Ribero também foi atacada pelo mesmo motivo no paredão entre Manu e Prior. No programa, Manu Gavassi foi chamada de racista por dizer certa vez que Marcela e Daniel eram esteticamente agradáveis. “Casal que a cor combina, a cor das pessoas mesmo, é muito forte. Esteticamente falando”, disse. Na época da eliminação, a escritora se posicionou como #ForaPrior e foi criticada por isso, inclusive chamada de racista. Ela reforça que, quando o brother foi eliminado, teve gente dizendo que o racismo havia vencido o machismo. “A Manu teve uma fala que foi racista, mas ela não foi sistematicamente dentro do programa uma pessoa racista. Agora, o oponente, o Prior, foi sistematicamente uma pessoa machista. Chegaram ao ponto de dizer que raça era mais importante que gênero, sendo que foram anos, não semanas ou dias, foram anos do ativismo de mulheres negras feministas pautando uma questão da inter-relação das opressões. Como as pessoas decidem julgar no Twitter que uma coisa é mais importante que outra? E muitas vezes baseadas em achismos?”, diz.
O jovem negro Samuel Veloso de Souza, de 18 anos, que cursa Turismo em Juiz de Fora, Minas Gerais, também foi atacado no Twitter por ter preferido a saída da Flayslane no paredão contra Marcela. “Devido a diversos motivos, minha torcida para a Thelma vem se intensificando cada vez mais e, pensando dessa forma, não era muito coerente eu votar para eliminar uma pessoa [Marcela] que era aliada de quem eu torço no jogo e que poderia ajudar a Thelma a chegar até a final”, explica o jovem, que completa seu posicionamento: “Cada um tem o seu motivo. Taxar alguém como racista especificamente nessa situação de votar na Flay é o cúmulo da banalização. O discurso de muitos foi deixar um machista no nível do Prior na casa para não deixar o Babu sozinho, como se o Babu fosse o pilar dessa edição e todas as pessoas do país tivessem o dever de defendê-lo. Qual é a diferença em querer deixar uma participante que era aliada de quem a gente torce? Isso nos torna racistas? Contraditório demais!“
O estudante universitário acredita que muitas das falas e dos comportamentos de Marcela no programa tenham sido fruto do racismo enraizado que existe em nossa sociedade, o que não os justifica, é claro. Entretanto, para ele, culpar a Thelma por ser amiga dela ou forçar uma torcida pelo Babu é errado. “Eu juro pra você que eu me perdi um pouco no consenso que chegaram de que a gente precisa defender esse homem [Babu] e gostar dele, mesmo com todas as falas problemáticas dele dentro do jogo. As pessoas esquecem que negros não são objetos. Eles são humanos, erram, podem ser preconceituosos, tóxicos e podem ter todas as imperfeições que o ser humano está sujeito a ter. Chamar alguém de racista por não gostar de um homem negro é, para mim, errado em muitos níveis“, disse para a CAPRICHO.
Stephanie, que não torce para o Babu e inclusive já pontuou muitas falas problemáticas dele dentro da casa, tem a mesma opinião do Samuel. “Já percebi que eu criticar a postura do Babu, que foi machista em alguns momentos, me coloca numa posição em que as pessoas dizem coisas muito violentas para mim, como se eu não pudesse apontar o machismo dele ou como se eu fazendo isso tivesse de alguma forma cancelando a pessoa. Eu não estou fazendo isso. Fui taxada inclusive de racista por não torcer para o Babu, como se eu não pudesse fazer isso. Quer mais? A Thelma é uma participante negra e ela está sendo chamada, por uma torcida que se coloca em uma posição de antirracista, de ‘chaveirinho de branco’, de ‘capitão do mato’, de ‘negra de alma branca’, de uma série de ofensas racistas. As pessoas fazem memes, elas ofendem. Cheguei a ver um comentário insinuando que ela não tinha consciência racial. Isso tudo vindo de pessoas que são negras. Qual é o sentido? As pessoas estão vendo as coisas de uma forma muito banal”.
Sobre a questão do racismo enraizado, ou estrutural, Amanda Oliveira, de 16 anos, da Galera CAPRICHO, retoma algumas falas que Marcela teve no jogo, como quando ela disse que Babu seria o dono da cantina, durante uma brincadeira de adivinhar quem seria quem na escola. “Já foi estabelecido um lugar para as pessoas negras. Ele não seria um estudante ou professor, ele seria o tio da cantina. Sobre o olhar de superioridade que o Babu disse que Marcela dava para ele, a gente sabe muito o que ele quis dizer. Tenho certeza de que as pessoas negras se identificaram”, garante a jovem, que se posiciona da mesma forma que a Tati Nefertari.
Tati afirma que as redes sociais, principalmente o Twitter, permitem debater questões, como racismo e machismo, e podem ajudar a democratizar o acesso a essas informações, mas que o termo “militante” tem sido totalmente esvaziado no Twitter. “Militar é estar organizado, fazer parte de algum movimento social, contribuir ativamente dessa maneira”, esclarece. Stephanie acredita que muita dessa “militância das redes” pode ser justificada pela nossa necessidade de ficar se provando, e que hoje as pessoas estão sempre na posição de ataque. Foi isso o que a Bruna Nunes, da Galera, quis dizer com sua declaração de que falta didatismo na militância.
É preciso debater, ouvir os dois ou mais lados do debate, argumentar, respeitar e, vez ou outra, pegar pela mão (mesmo que virtualmente) e esmiuçar a problemática, porque o racismo estrutural, por exemplo, não pode ser usado como justificativa para tudo nem como uma maneira de suavizar atitudes racistas, mas ele existe e nem sempre as pessoas que o praticam têm plena consciência disso. Caso contrário, fica difícil lidar com um eterno “Jogo da Discórdia” no Big Brother da vida real.